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ECOTEOLOGIA- PARTE 16- UNIDADE 4: A ECOLOGIA INTEGRAL E A ECOTEOLOGIA- 4. ECOTEOLOGIA E A TERRA REDIMIDA 16 Apr 4:42 AM (13 days ago)

 

A ecoteologia é o olhar sobre a questão ambiental, a partir da ótica da fé, da espiritualidade, da mística, da teologia, que tem como intuito ver esta realidade com base no filtro religioso e das religiões. Há uma intensa relação entre Deus e todo ser criado e que é abordado por todos os credos. O cristianismo tem uma visão muito própria de ecoespiritualidade. A fé cristã tem um modo próprio de celebrar a vida dentro de seus ritos, pão e vinho, corpo e sangue, todos os elementos que estão na força sacramental, água, fogo, vento, flores, e um mundo de símbolos nos ritos, no altar, na arte sacra e nos textos devocionais e litúrgicos. A ecoteologia ganha seu espaço como uma nova hermenêutica teológica.

A redenção não atinge apenas a dimensão humana, mas toda a terra entra na força salvífica e redentora. Não existe uma teologia fora da realidade que não esteja enraizada no chão da experiência. Deus está em meio a tudo que existe e por isto respondemos aclamando com certeza e convicção: “Ele está no meio de nós”.

A Bíblia nos ensina a contar uma história orando e atravessando caminhos rumo à terra prometida. Há uma ação de Deus sobre a história e em todos os detalhes da vida. Há Revelação, Tradição e Mundo, Transcendência e Imanência. Tudo está interligado também na reflexão teológica. Nenhum discurso teológico pode estar distante ou separado da realidade. Tudo o que é importante para a humanidade é muito importante para a teologia. Para o cristianismo, a Encarnação é a cristificação da matéria, pois tudo foi tocado por Deus de um modo muito especial. A Terra toda, todo o Universo são chamados a participar do projeto do Reino de Deus.

Se podemos definir a Teologia como a ciência da fé, podemos declarar também que a ecoteologia é um olhar sob a ótica da fé dentro do conhecimento planetário. Por isso, temas como ética da terra, ética planetária, consciência planetária e espiritualidade ecológica serão seus objetos de reflexão, pesquisa e ação.

Somos filhos e filhas da terra, o que nos coloca dentro da teologia da criação, faz renascer uma antropologia teológica, gera uma releitura dos relatos bíblicos da criação. A teologia dialoga com a geociência e a ecoteologia nos leva a perguntar: qual o lugar e o papel das criaturas todas no projeto salvífico? O que seria o novo céu e a nova terra? Como aproximar humano e divino, céu e terra, matéria e espírito, corpo e alma? O futuro da vida depende das respostas a estas perguntas. Temos que integrar a salvação na pluralidade das questões.

O termo “ecoteologia” agrega o prefixo “eco”, pois alude à “ecologia” [...] o termo é muito amplo e abarca aos menos três âmbitos: ciência da interdependência de todos os seres, ética do cuidado com o planeta e paradigma pós-antropocêntrico. A ecologia apresenta várias vertentes: ambiental, mental, social e integral. Ela visa compreender como os seres relacionam-se na biosfera. (MURAD, 2016, p. 212)

IMPORTANTE

Ecoteologia é a reflexão aprofundada das relações, conexões, intercâmbios e interdependência, ou seja, um saber de saberes entre si relacionados. Assim, “[a] singularidade do saber ecológico consiste na transversalidade, quer dizer, no relacionar pelos lados (comunidade ecológica), para a frente (futuro), para trás (passado) e para dentro (complexidade) todas as experiências e todas as formas de compreensão como complementares e úteis no nosso conhecimento do universo, nossa funcionalidade dentro dele e na solidariedade cósmica que nos une”. (BOFF, 2015, p. 20)

A ecoteologia desafia aquele que crê a ampliar a sua visão e compreensão de quem é o ser humano, qual a qualidade das suas relações com a grande teia da vida: terra, fogo, água e ar, micro e macro organismos, porque moramos em uma comunidade de vida. Em virtude disso, a ecoteologia tem como função provocar a fé para que saia apenas como solução de questões pessoais e se comprometa com o todo da existência. Sair do consumismo para a partilha, da dominação para a administração do cuidado por todos os seres, do viver sem sensibilidade para um bom senso em saber, compreender, perceber e cultivar a vida em todos os aspectos. A ecoteologia tem que estar inserida dentro da doutrina cristã e de outros credos e não fora dela.

A terra ganha destaque na reflexão teológica, a obra criadora é eterna e ainda não está terminada, ela é um dom, um corpo místico cósmico. Viver é graça sempre original e originante. Mesmo sendo seres privilegiados, temos uma responsabilidade maior perante todas as criaturas. Deus é destacado na ecoteologia como comunhão, como Trindade, Ele é imanência, transcendência e transparência presente em todas as criaturas.

Sob influência do paradigma ecológico, a ecoteologia enriquece a reflexão sobre a Trindade. Desvela que o Deus Uno e Trino, Comunidade Amorosa e Interdependente, é a referência primordial e última que fundamenta a biodiversidade, a diversidade humana, a prioridade da cooperação sobre a competição, e a interdependência de todos os seres na comunidade de vida. Se a essência de Deus é relacional, toda criatura pode ser entendida como ser-em-relação. (MURAD, 2016, p. 225-226)

A ecoteologia quer nos ensinar que temos que pisar com respeito na terra, onde não só pisamos como também nos enraizamos. Ela é a moradia que nos envolve e nos protege, por isso, temos que protegê-la. Ela mais do que uma força material é um organismo vivente e fecundo que abriga, em seu ventre e na sua superfície, todas as formas de vida e o mundo humano está dentro dela e não sobre ela para dominar e destruir.

A teologia se une a todas as ciências para mostrar que as ciências naturais, culturais e espirituais se unem nas pesquisas para salvar o organismo terrestre, em um caminho integrador de todo conhecimento, para uma sobrevivência conjunta.

Os ecossistemas pertencem a diversidade de formas de vida entre as quais o mundo humano habita. Redimir a terra é transformá-la no espaço sagrado onde tudo se interliga, céu, terra, mar e ar. No Credo Niceno-constantinopolitano, temos a afirmação de mundo visível e invisível. Céus, no plural, é o espaço que se abre para Deus de um modo inefável pois o Divino não tem limites. Terra, no singular, porque ela contém em seu espaço limitado todo o universo.

Nesses espaços, então, Deus faz sua morada. Deus é criador e a terra é símbolo da fertilidade que vem do divino. Deus cria espaços para a vida e a vida recria com o Criador com toda a força criadora e evolutiva. Para o mundo bíblico a terra faz parte da aliança. “Ponho meu arco nas nuvens, como sinal de aliança entre mim e a terra” (Gn 9,13). Temos que respeitar a vontade de Deus sobre a terra (MOLTMANN, 2012, p. 136-139).

CONCLUSÃO

A proposta desta Unidade foi mostrar que toda a vida, todos os seres, o ser humano e o seu agir diante do mundo e das coisas precisam estar envolvidos por uma espiritualidade. Reforçamos que não se pode separar a ação da contemplação. Porém, toda espiritualidade tem que levar a uma iluminação das práticas e mudança de atitude, uma verdadeira transformação e esta transformação implica na atenção sensível a tudo o que nos circunda no cotidiano, sobretudo no que diz respeito a natureza.

Sinais dos tempos são vistos sob o olhar da fé e da realidade e esse olhar traz resistência. Cuidar do aqui e do agora, do Reino que está próximo para ter um futuro, é uma escatologia que mostra o que vem depois como consequência de uma absoluta realização de um mundo transformado. Assim, precisamos fazer novas todas as coisas, mostrar o novo céu e a nova terra.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

ASSIS, F. Cântico das Criatura. Franciscanos, [s. d.]. Disponível em: https://franciscanos.org.br/carisma/simbolos/o-cantico-das-criaturas#gsc.tab=0. Acesso em: 25 ago. 2021.

BACHELARD, G. A filosofia do não: o novo espírito científico; A poética do espaço. Trad. de Joaquim José Moura et. al. São Paulo: Abril Cultural, 1978.

BOFF, L. A mística da união religioso-cósmica. No Cântico das Irmãs Criaturas de São Francisco de Assis. Em aula sobre o Cântico das Criaturas, 1975.

BOFF, L. Sustentabilidade: O que é - O que não é. Petrópolis: Editora Vozes, 2012.

BOFF, L. Ecologia: Grito da Terra, grito dos pobres. Petrópolis: Editora Vozes, 2015.

BOFF, L. A Casa Comum, A Espiritualidade, O Amor. São Paulo: Editora Paulinas, 2017.

CAMUS, A. Hochzeit des Lichts. Zürich, 1954.

CENTRO FRANCISCANO DE ESPIRITUALIDADE. O espelho da perfeição. Fontes Franciscanas, [s. d.]. Disponível em: http://centrofranciscano.capuchinhossp.org.br/fontes-leitura?id=2668&parent_id=2667. Acesso em: 25 ago. 2021.

LECLERC, E. O Cântico das Criaturas ou os Símbolos da União. Petrópolis; Editora Vozes/FFB, 1999.

MAZZUCO, V. A mística de São Francisco de Assis. Portal Ordem Franciscana Secular, out. 2013. Disponível em: https://ofsabaete.blogspot.com/2013/10/a-mistica-de-sao- rancisco-de-assis-12.html. Acesso em: 25 ago. 2021.

MERINO, J. A. São Francisco e a Ecologia. Braga: Editorial Franciscana, 2007.

MOLTMANN, J. Ética da Esperança. Petrópolis: Editora Vozes, 2012.

MURAD, A. (Org.). Ecoteologia: um mosaico. São Paulo: Editora Paulus, 2016.

SÃO JOÃO PAULO II, Papa. Carta Apostólica Inter Sanctos, 29 nov. 1979. Disponível em: https://cffb.org.br/sao-francisco-de-assis-padroeiro-da-ecologia/. Acesso em: 11 mai. 2021.

TOMÁS DE AQUINO, S. Suma Contra os Gentios. Trad. Odilão Moura e D. Ludgero Jaspers. Porto Alegre: Sulina, 1990.

TOMÁS DE CELANO, S. Primeira vida (1Cel). Centro Franciscano de Espiritualidade. Disponível em: http://centrofranciscano.capuchinhossp.org.br/fontes-eitura?id=1840&parent_id=1760. Acesso em: 25 ago. 2021.

TEIXEIRA, Frei C. M. Fontes Franciscanas e Clarianas. 2. ed. Petrópolis: Editora Vozes; FFB, 2008.

Texto originalmente publicado pela USF- FREI VITORIO MAZZUCO FILHO


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ECOTEOLOGIA- PARTE 15- UNIDADE 4: A ECOLOGIA INTEGRAL E A ECOTEOLOGIA- 2. SUSTENTABILIDADE E A RELAÇÃO VIÁVEL ENTRE A HUMANIDADE E A NATUREZA - 3. LINHAS DE ORIENTAÇÃO E AÇÃO 16 Apr 4:32 AM (13 days ago)

 


O que é sustentabilidade? Se estamos abordando a harmonia entre o ser humano e todas as formas de vida: o ambiente, a cultura, a arte, a sociedade a economia, e se estamos querendo criar, conservar um sistema unindo o humano e a Natureza, estamos no caminho da compreensão do que é sustentabilidade. É uma mobilização em torno do bem-estar comum, sem o uso e o abuso massacrante do que é o natural. Mas isso não esgota a compreensão de sustentabilidade, pois ela é hoje um parâmetro social, moral e ecológico.

Esse é um dos temas mais discutidos da atualidade, que entra na educação e em diferentes áreas do saber tais como: agricultura, direito ambiental, engenharia ambiental, economia, ética, filosofia e geografia. A sustentabilidade tem a ver com aumentar os recursos naturais e fazer com que eles cresçam com a aplicação natural de seus próprios recursos.

SAIBA MAIS

Onde hoje temos pequenas reservas florestais ou algumas praças arborizadas, um dia poderia ter sido uma grande área de mata atlântica com espécies mais variadas. Nesta mata as árvores, frutos, flores, sombra e a diversidade de madeiras. À sombra úmida da mata as folhas secas e os restos de animais iam se decompondo e adubando o solo e as raízes. Em meio ao calor e a chuva os nutrientes naturais da terra alimentavam todas as espécies da flora. Nasciam novas mudas e delas novas plantas formando a biodiversidade. 

Sem erosão, a água da chuva canaliza-se de um modo ritmado e irrigando arbustos, árvores frondosas, orquídeas e bromélias, ramagens e cipós, e a vida vegetal e animal se auto alimentavam. Ao apodrecer, com o tempo, caiam e nasciam de novo em um natural reflorestamento. Aves e vento ajudavam a espalhar sementes em um replantio próprio entre fauna e flora.

A sustentabilidade sempre existiu, ela foi supressa quando houve desmatamentos, urbanização, excesso de cimento e asfalto. A sustentabilidade ajuda a terra a se recuperar. A sustentabilidade é um modo de produção que aproveita o que existe, reciclando e economizando, não deixando cair um ecossistema.

Posto isso, não podemos deixar de destacar o conceito de sustentabilidade criado por Leonardo Boff (2012, p. 107) que a define como

[...] toda ação destinada a manter as condições energéticas, informacionais, físico-químicas que sustentam todos os seres, especialmente a Terra viva, a comunidade de vida e a vida humana, visando sua continuidade e ainda atender as necessidades da geração presente e das futuras, de tal forma que o capital natural seja mantido e enriquecido em sua capacidade de regeneração, reprodução e coevolução.

A relação possível entre a humanidade e a natureza é que a sustentabilidade tem que ser ecologicamente justa, natural, inclusiva e economicamente viável. Tem como se produzir sem detonar o natural, sem extinguir as fontes de energia, os mananciais e sem impactos ambientais. Buscar, então, o alternativo para não extinguir o potencial natural.

Essa relação sustentabilidade entre a natureza e a humanidade atinge vários aspectos da vida: os alimentos, a energia alternativa, material reciclável, o lixo não degradável, os sumidouros de dejetos, transporte e moradia, não uso de agrotóxicos, plantio de árvores e grama nas encostas, enfim, um extremo cuidado para com a terra, onde está enraizada a vida humana e suas comunidades viventes. As palavras de ordem são: cuidar e preservar a matriz vital da terra.

Fazer com que os ecossistemas não sejam afetados, porque eles são essenciais para a reprodução da vida, não cuidar, é deixar morrer. É preciso prevenir para ter futuro e salvar toda uma civilização de agora e a que virá.

Atualmente alcançamos um nível tal de agressão que equivale a uma espécie de guerra total. Atacamos a Terra no solo, no subsolo, no ar, no mar, nas montanhas, nas florestas, nos reinos animal e vegetal, em todas as partes, onde podemos arrancar dela algo para nosso benefício, sem qualquer sentido de retribuição e sem qualquer disposição de dar-lhe repouso e tempo para se regenerar. Mas não nos iludamos. Nós, seres humanos, não temos nenhuma chance de ganhar esta guerra irracional e desapiedada, pois a Terra é ilimitadamente mais poderosa que nós. De mais a mais, nós precisamos dela para viver. Existiu bem antes do surgimento do ser humano e pode, tranquilamente, continuar sem a nossa presença. Mas será uma perda inimaginável para o próprio universo que, nesta sua pequena porção que é nosso planeta, não mais se poderá, mediante o ser humano inteligente e consciente, ver-se a si mesmo e contemplar a sua majestade. (BOFF, 2012, p. 23-24)

A sustentabilidade tem a ver com o futuro das gerações, a partir dos cuidados de agora e do cuidado com os desfavorecidos.

Na Carta do Rio de Janeiro se afirma claramente que “todos os Estados e todos os indivíduos devem como requisito indispensável para o desenvolvimento sustentável cooperar na tarefa essencial de erradicar a pobreza, de forma a reduzir as disparidades nos padrões de vida e melhor atender as necessidades da maioria da população do mundo. Estabeleceram também um critério ético-político no sentido de que “os Estados devem cooperar, em um espírito de parceria global, para a conservação, proteção e restauração da saúde e da integridade dos ecossistemas terrestres; face às distintas contribuições para a degradação ambiental global, os Estados têm responsabilidades comuns, porém diferenciadas”. (BOFF, 2012, p. 35)

SAIBA MAIS

Para um completo conhecimento, compreensão e prática da sustentabilidade, sugerimos e insistimos na leitura da obra de Leonardo Boff intitulada Sustentabilidade: O que é - O que não é. Petrópolis: Editora Vozes, 2012.

3. LINHAS DE ORIENTAÇÃO E AÇÃO

Temos que partir de um princípio que norteia a humanidade na sua dimensão tridimensional: nós somos éthos (Ήθος), isso é, a casa do coração, a casa da nossa identidade, da nossa sacralidade mais intima, do nosso núcleo, do nosso centro, do nosso mais puro “eu sou” à nossa forte subjetividade. Nós somos ética (Ηθική), e isso significa a casa dos nossos valores, virtudes e princípios, a nossa dimensão relacional e fraterna. Nós somos óikos (ΟΙΚΟΣ), a casa do mundo, do circundante, a nossa consciência e vivência planetária.

Esse tríplice olhar sobre a realidade é um olhar espiritual que instaura a amplidão do olhar: do imediato visível ao olhar com os olhos do Espírito. Esse olhar parte de dois pontos de vista: o olhar a partir da Mística (muien, mistikós), o olhar profundo que penetra o interior de todos os seres e da realidade. O olhar que desvela o Ser que nos faz ser. O Ser que tudo sustenta e tudo governa. E o olhar a partir da Poética (póesis), que vem de emoção, admiração, encantamento, simplicidade, consanguinidade. O olhar que consegue perceber o acabamento mais íntimo e perfeito de todas as coisas.

O Dom de Existir é estar na mesma casa, sentir-se bem na mesma casa e cuidar da harmonia da casa. É conviver e não usar a partir de sistemas utilitários. É estar no mundo e ir pelo mundo, refazer o itinerário da existência. Tudo é um caminho que sai e retorna para o seu único lugar: o lugar sagrado. Quem escreveu o livro do Gênesis fez este percurso. É uma via metafísica, isto é, um movimento de espírito para compreender a realidade.

Tudo sai do Todo, tudo revela a sua face e faz o retorno ao Sagrado. É a origem de Deus como causa eficiente. É perceber as manifestações, as Hierofanias, desdobramentos de forças que vem de uma ação divina, os vestígios e imagens deste Deus como causa exemplar e causa final. Por isso, estamos aqui refletindo tal caminho que chamamos Espiritualidade e Ecologia, uma cosmovisão muito especifica, a mística da casa.

O que é a mística da casa? A mística nos dá um modo singular de pensar a existência e, com isso, podemos tratar um pensamento místico, de uma filosofia mística, de uma postura mística que perpassa um modo religioso de estar no mundo. A mística gera uma forte espiritualidade e é aqui (na mística e na espiritualidade) que uma experiência se articula e faz uma ponte entre o mundo vivencial e o mundo da fala.

Não podemos esquecer que mística sinaliza, essencialmente, uma experiência real e não uma abstração. A mística das relações com todos os seres é uma ecologia. Não é fácil abordar sobre a mística, porque é uma perseguição sem pouso a tudo aquilo que se subtrai, mas é estar sempre na dinâmica de alcançar. A espiritualidade é a vida vivida nesta dinâmica. É a incessante busca de Deus.

Muitos pensam que a linguagem mística é falar com a língua dos Anjos, mas quem garante que alguém quer ouvir? Quem garante que alguém vai entender? É como articular sobre a experiência de uma dor intensa que se está sentindo. O outro entende o que é a dor, porém não consegue entender a dor que você está sentindo. De forma semelhante, vive a pessoa mística a sua experiência de estar na vida: para a sua experiência há uma evidência, para o que está fora dele nem sempre isto aparece tão claro. 

Mística é a profunda experiência de união do eu com o Todo, em um encontro entre o humano e o divino, o céu e a terra, o espírito e a matéria, o imanente e o transcendente. Esse encontro possui um potencial místico que salta para fora e faz uma ponte de ligação com todos os detalhes da existência. A mística moderna chama essa experiência de unicidade: unidade, presença, felicidade, vida, morte, amor e tempo.

A mística possui essa força que visa a união, reporta ao amor a todos os seres e abre as experiências humanas para viver positivamente. Ser uma pessoa mística não é viver em uma passividade, mas sim estar no contínuo movimento de perceber o encantamento pelo Inefável (o Sem Limites).

Não é fácil encontrar um nome para o Todo, por isso, a pessoa mística se afina mais com a linguagem poética. A linguagem poética não se fecha no círculo de uma definição, mas sugere, representa, alegoriza, usa as metáforas para fazer uma alusão ou uma hermenêutica da verdade presente em todo ser criado. Faz uma alusão, uma reverência, uma exclamação, quando não consegue uma denominação exata.

O Todo aparece sob muitos significados. Assim, podemos dizer Deus, o Divino, o Sagrado, o Absoluto, podemos sempre dizer com reverência quando, através da linguagem, ficamos maravilhados. A linguagem é o lugar em que a pessoa mística se depara com a prece. É a comunicação de sua experiência com o Divino.

Holderlin trata da união com a natura. Max Scheler aborda da sensibilidade cosmovital. Os dois evidenciam a capacidade do ser humano de sentir-se parte do cosmo. A tradição judaica insere o humano neste contexto pela experiência do salmista. O conceito de Holderlin e de Scheler não é apenas um estado de consciência ecológica moderna, mas é viver a vida com qualidade mística, ou seja, um modo de estar em comunhão com o Cosmo como consanguinidade criatural e não como uma mera consciência militante ambiental. Pois, existe uma unidade entre céu e terra, mas há momentos em que acontece uma ruptura e não se percebe a fecundidade desta unidade. Foi o grande encontro entre céu e terra, espírito e matéria que permitiu a multiplicidade dos seres e gerou o Paraíso.

Ao perder a unidade o humano vive com saudade de reencontrá-la e voltar ao Paraíso perdido, a mística e a espiritualidade permitem este encontro, permitem que o humano volte a abraçar o céu e a terra. “Ser puro significa reencontrar aquele Lar da alma onde sentimo-nos ligados a este mundo” (CAMUS, 1954, p. 45). Tanto no Oriente como no Ocidente, desde a antiguidade, sobretudo no período medieval e em nossa contemporaneidade, a Unio Mistica é o centro dos pensamentos e experiências.

A Unio Mistica é o Misterium Tremendum:

O humano entra em contato com o segredo da criação e se extasia diante da grandeza deste mistério que tudo pervade. Isso resulta em reações ou manifestações emocionais mais diversas, como: espanto, admiração, temor, reverência, maravilhamento, medo, ou formas mais brandas de sentimentos e reações, como por exemplo, o silêncio contemplativo. O segredo do encontro com o Sagrado tem a sua fala e não falatório. Há um recolher-se para colher a manifestação da experiência e isto leva à quietude.

A Unio Mistica é a Majestas:

A admiração plena da Grandiosidade do Divino presente em tudo e aquela sensação de anulação da própria existência diante da existência de Deus. O eu torna-se poeira e cinza diante da Majestade Divina, mas é exatamente aí que experimenta a força e a transcendência de ser um humano habitado pelo divino.

A Unio Mistica é Orgé

Vontade, paixão, força, movimento, Energia, atividade, ação e numinosidade, ou seja, aquilo que foge ao alcance dos conceitos.

A Unio Mistica é também Fascinans:

Atração, fascinação, aproximação, intimidade, trazer bem para o coração. O humano, diante de todos os seres, não pode se sentir repelido, mas atraído. O numinoso promete o sadio, acena com algo que é sempre mais ou ainda mais. Esse contato transcende qualquer estado emocional comum. A sensação que o fascinans deixa na alma humana é indizível; a língua é incapaz de expressar o que a alma sente.

A Unio Mistica é o Augustus:

O valor numinoso que é o encontro entre o visível carnal e o invisível espiritual como força de atuação. A fala audível do mistério com o silêncio contemplativo. O fio que liga céu e terra. O olho do Anjo no olho do Humano. É um estado sensível de alma, uma inteligência contemplativa. O numinoso possui uma Força Grandiosa (Augustus) que fundamenta todos os valores. Sem o Numinoso não existe base para exigências morais. (cf. Deus nas Constituições e Estados e Nações).

 A Unio Mistica é o Estranho:

O muito diferente que está presente no Tremendum, na Majestas, na Orgé e no AugustusO estranho ultrapassa o nosso horizonte racional e faz mais do que nos assustar, quer nos colocar em uma experiência de humildade frente as dimensões tanto do universo como da nossa existência e de nossas ações.

Espiritualidade e ecologia como reconstrução da casa interior e exterior é um caminho em busca da identidade. Temos que fortalecer uma espiritualidade para termos o belo arranjo da casa interior que vai influenciar a harmonia exterior. Temos que ir fundo nas opções e escolhas em oposição ao forte consumo. Até o neo convertido hoje é um consumidor religioso, vive de souvenirs da fé e não do encontro com o mistério, e não tem a contemplação da ação, mas fotografa a ação do mistério. É a imagética, o excesso de câmeras digitais nas celebrações. Menos preocupação com a auto-imagem (selfies), e olhar mais o circundante.

A espiritualidade e a ecologia podem recuperar a civilização do vazio. Deus assume a vida. Temos que recuperar a mística da Encarnação. Ele é Alguém que vem habitar em meio a nós e tomar a nossa forma. Morar junto. Ele é parceiro, mais do que energia e fé Ele é cuidado. Deus deve transparecer no rosto de todas as práticas de cuidado e gestos de Amor. Como vê-lo na depredação? A espiritualidade e a ecologia hoje moldam a Identidade Humana, que também é a nossa casa. A espiritualidade e a ecologia são degraus da escada para entrar na casa. Para entrar na casa você precisa escalonar e deixar a escada, mergulhar em uma forte experiência. O concreto da vida é a escada pela qual nós vamos sempre entrando mais e mais na moradia do Ser.

É através de experiências como essas que nos apaixonamos mais e mais pela vida. Cada momento da história nos dá essa possibilidade. O Curso que estamos fazendo aqui nos dá a possibilidade de sabermos quem somos nós, criaturas e criação. Um estudo pode desfigurar o rosto da vida, mas também transfigurar. Assim, a identidade é chegar a verdade de nós mesmos e a verdade de todo ser criado.

EXEMPLO

São Francisco de Assis tem como identidade relacionar-se fraternalmente. Ele se vê relacionado com toda a realidade histórica que o rodeia, pois é nela que se relaciona com seu fundamento, com seus princípios. Fez do Evangelho o caminho para fraternizar tudo o que existe. Uma caminhada de despojamento para vestir-se das riquezas de Deus. Uma caminhada de sonhos para realizar projetos. Sua identidade foi adquirida no andar pelo mundo em busca da verdade. Sua vida foi um processo de abertura (obediência) aos valores presente em tudo e em todos.

É preciso transformar a vida no Cântico das Criaturas, dobrar-se humildemente ante a grandeza do Altíssimo. Ler-se em meio às Suas obras, ver-se no espelho da criação. Cantar o sol e a lua que iluminam a sua fala, pegar a palavra e levar para a essencialidade dela. Se você fizer bem a fala, a partir da convivência com a vida, a humanidade vai ver nessa fala a presença da divindade. Toda fala deve ser um relacionamento do Ser com o caminho. Todo e qualquer relacionamento é prestar atenção nos sentidos que se apresentam como significado. Todo e qualquer relacionamento é prestar atenção nos sentidos que se apresentam como significado.

O ser humano é essencialmente um caminho, em que cada passo que dá é que faz este caminho surgir. O caminho vai aparecendo como a síntese do sentido da vida. Você tem a palavra, mas ouvindo todos os seres.

A espiritualidade e a ecologia são o nosso caminho ontológico (logos + óntos): a colheita do ser, o humano colhido pelo ser. E tiramos o sentido de todas as coisas no encontro com todas as coisas, que é uma abertura aos diferentes toques do caminho. Esse encontro é mais encontro, quando cada qual se torna mais a sua identidade em comunhão com todo o ser criado. Quando vive a sensibilidade da percepção de tudo o que existe de um modo mais fascinante e profundo. Quando cada um, cada uma, é mais total e faz dos caminhos uma Convergência de totalidades.

A espiritualidade e a ecologia são temas emergentes da Modernidade. Modus aernus, moderno: espaço aberto, horizonte, não um caminho já feito, mas o modo como abertura de uma possibilidade. Modo é o caminho para se chegar a realidade. A história é a força que mostra o diferente das épocas assim como a floresta é o diferente das árvores. As datas são apenas marcos comemorativos, mas são as diferenças que fazem o movimento, a força que move o momento, o caminho da história e a dinâmica da história vai mostrando o diferente da humanidade.

No momento em que estamos vivendo a eco-espiritualidade faz a diferença. Mas o moderno retoma o Medioevo, a Idade do Meio: esse movimento pendular entre o antigo e o novo. O caminho medieval nos legou a trilogia: fides, natura, creatio. A Idade Média traz a universalidade, a intuição e a teologia, e tem como centro de seu empreendimento as catedrais. A Idade Moderna nos dá a universalidade, a catolicidade e a ciência e tem como força a empresa. A empresa que explora a matéria prima começa a se rever a partir da provocação da identidade espiritual.

Do Medieval ao Moderno à influência do pensamento que pensa, a fala da Filosofia traz as provocações de Blaise Pascal, de Reneé Descartes, de Heidegger. A partir daí temos o pensamento cartesiano: RES COGITA: o ser que pensa (cogito ergo sum). Na filosofia heideggeriana, pensar o que pensamos com maior radicalidade. RES ESTENSA: ser que representa o mundo que está ali aos pés do familiar.

O Cântico das Criaturas é o canto das diferentes representações do Senhor. RES INFINITA: o ser que se supera, a superação que vem da evidência do infinito. A inspiração dando sopro ao objeto. Pelo toque infinito o objeto deixa de ser objeto. Só é real o que pode ser concebido em sua verdade. A força do espírito que tudo move é a ontologia da realidade. Se isso não for trabalhado, não se está dentro de um projeto existencial. Aqui está a grandeza do humano entre as criaturas. Somos inumanos quando não deixamos ser a verdade das coisas.

No pensamento de Pascal, ESPRIT DE GEOMETRIE: é o diálogo com a realidade, o diálogo com as coisas que eu posso ver, que posso teorizar, que posso tocar em um conhecimento palpável, métrico e estatístico. ESPRIT DE FINESSE: é o silêncio contemplativo da fala. Não consigo dizer então me calo e reverencio. Deixo todos os seres na sua máxima doação. Olho e compreendo a partir do coração. É o bom modo de olhar que percebe e dá brilho às coisas. ESPRIT DE FOI: é acreditar. É a fé. Aqui morre a geometrie e a finesse e só resta o absoluto. Jesus morre para viver. Olhar a partir da fé é a mais plena atenção e a mais natural oração da verdade. O discípulo viu e acreditou.

Precisamos ver, tocar, ouvir mais. Precisamos crer e não duvidar que existe a partir de um mergulho pessoal na realidade. Somos mais crença do que fé. Crença é confiar no que outros ouviram e relataram. “Senhor, quem sois vós, quem sou eu?”. Do medieval ao moderno, a existência e a essência são a mesma coisa. Na modernidade, a essência anda mais esquecida. Como sabemos que algo existe? Vendo, vendo imediatamente, vendo através da intuição. É a maneira mais imediata de constatarmos a existência das coisas.Tocando. É o toque no objeto, o toque em alguém, a percepção imediata das coisas. Ouvindo. Sentir o som que tudo pervade, a tonância, a vibração. Tudo isso leva a pensar e provar e leva a perguntar: você duvida que existe? Alguém já viu a Alma? Existe algo em nós que não é somente corpo, que não é somente matéria? “Eu sou.” – O eu que pensa deve ser uma substância, uma realidade. É desse modo que ele capta o Espírito que é uma realidade permanente. É identidade e consciência. Todas as coisas revela Aquele que é.

Como podemos estar certos da existência de Deus? Ele é um Ser que é uma essência existencializada. Ele é o Ser Necessário que implica em uma existência. Ele é o Ser Possível que passa da não existência (do oculto) para a existência (a revelação através de suas obras).

As coisas, por sua vez, não são Deus, mas Ele está nelas. Ele existe pelo simples fato de existirem as suas obras. A sua manifestação O tornou Possível. Deus é um ser absolutamente necessário. Enquanto a vida existir, Ele existe necessariamente. O mundo, a vida, as criaturas todas são eternas e necessárias. Elas vieram de Deus por um processo necessário. O mundo é causado por Deus, temos que por isto preservar a nossa casa- mundo.

Do medieval ao moderno, uma verdade: Fides quaerens intellectum, a fé que procura compreender. Primeiro crer, depois compreender. Acreditar na vida como uma questão de fé. Amar a vida é compreender Deus em sua essência. Santo Anselmo (1033- 1119) dizia: Credo ut intelligam, eu creio para compreender. O acesso a verdade das coisas se dá pelo caminho da fé e compreensão. Não pode haver um mais e um menos, se não houver o máximo. Por isso, Espiritualidade Ecológica é dizer: creio que tu és um ser do qual não é possível pensar nada maior. Deus é maior se pensado na verdade da realidade. Pensar Deus é pensar o seu Ser Divino existente na realidade. Creio... logo Ele existe. Vejo... logo Ele existe. Penso... logo Ele existe.

Nossa perfeição, nossa imagem e semelhança de Deus corresponde ao nosso conhecer e ao nosso modo de ser. O ser humano é um Espírito Encarnado, por isso, ele só pode conhecer coisas encarnadas. O caminho religioso é mediação para que nós possamos dizer a partir do coração (espiritualidade). Tudo o que existe, desde a eternidade por si mesmo, foi criado por Deus (ecologia espiritual). Começa a existir no tempo pela máxima doação de Deus. Ele existe desde a eternidade, e se não existisse Deus não existiria nada.

Todo o nosso ser e todo os seres vem de Deus. Ele não quer reter para si a sua perfeição, Ele quer doar essa perfeição. Nossa perfeição, nossa imagem e semelhança de Deus corresponde ao nosso conhecer e ao nosso modo de ser. O ser humano é um Espírito Encarnado, por isso ele só pode conhecer coisas encarnadas.

Um conceito provocativo para pensarmos a espiritualidade e ecologia e como se dão na prática, ou como iluminação de nossas práticas, é proteger a natureza é dar tempo para que o natural se recomponha e seja sempre cuidado. Não podemos deixar que tecnologias e todo o progresso transformem-se em processos de destruição. Temos que viver a ecologia como profecia: lutar sempre pela qualidade da vida em todas as circunstâncias. Viver e pregar um estilo de vida que gaste menos energia e recursos de fontes de energias.

É preciso, assim, educar para uma comunhão de bens e não de acumulação desenfreada. Que a tecnologia seja criativa em não causar danos; que ela respeite a dignidade humana e o ciclo natural do planeta, a nossa Mãe Terra. Ser guardiões de habitat. Cuidar da evolução das espécies e cuidar da evolução do humano. Se cresce a população, tem que crescer a melhor distribuição de cuidados e de bens. Nenhuma violência de qualquer modo, física ou psicológica, contra a espécie humana e contra a natureza.

Falamos muito de fratura social, mas temos que abordar também da fratura existencial e emocional que atinge o humano. Lutar por um desenvolvimento justo e para a conservação do ambiente natural. Escolher sempre uma política que pense o mundo como plural. A pluralidade sempre existiu, o que mudou foi a proximidade e a rapidez dos meios midiáticos em trazer tudo de um modo acelerado para perto. Antes cada realidade ficava em seu espaço, hoje ela está em nossos cotovelos.

Tudo hoje está no mesmo espaço, está nas pessoas, está nas famílias. Não existem mais muros que nos separam. Não caiu apenas o muro de Berlim. Há uma legitimidade na pluralidade que assusta ainda, mas é aceita (o mundo religioso ainda se assusta com a pluralidade). É necessário exigir e fazer cumprir uma educação para questões ambientais em todos os espaços culturais. Crescem os espaços culturais e é preciso implantar através deles essa educação. Pregar uma democracia ecológica que respeite todas as formas de vida. A vida é um valor por si só e tem que ser respeitada e protegida. Todos os seres estão em relação uns com os outros em uma fraternidade universal.

Toda pessoa tem que se reconhecer parte desta unidade cósmica sem dominação, sem destruição. Buscar uma nova cultura em que se priorize a relação de gênero, a identificação imediata com as mensagens e transparência da vida, criando, assim, mecanismos de vida e não de morte. Ter a coragem de ser diferente, original e verdadeiro naquilo que se é.

Em um Plano de Pastoral, qual o espaço que ocupa o tema Espiritualidade e Ecologia? Na Formação? Na Educação? Tem-se a impressão que as instituições não estão preparadas para isso. Se não entra na dimensão formativa, não vai entrar na vida. Hoje há a liberdade de escolha e a escolha é a partir do indivíduo. Não são mais as fortes instituições que determinam uma escolha (pais saem para trabalhar, filhos saem para morar sozinhos). À vista disso, vale refletir sobre como pensar uma escolha mais totalizante, a partir do Eu sozinho.

Cultura era participar, transformar e divulgar tradições. Atualmente, há um sistema isolado de sentidos; uma feijoada completa em que se misturam coisas, gostos, gasto e satisfação imediata. As experiências são misturadas e geram uma nova cultura. O sentido não existe em si, existe a consciência de cada um em criar seus sentidos. Não existe a cachorricidade, existem cachorros. Há uma hiper oferta de possibilidades em que cada um pode compor uma verdade de seu tamanho ou do tamanho do seu grupo de convivência. 

Por que preciso da Natureza ou dos valores religiosos? O mercado é que decide o que cada um tem como identidade. Cada um compõe a sua identidade como se ela fosse um produto, tudo pode ser acoplado. Isso abalou o sentido simbólico e sacramental da experiência religiosa.

Estamos em uma sociedade onde o uso dos conhecimentos não é para todos de um modo igual. O mercado determina a história dos povos. É real a destruição do equilíbrio ecológico, o poder paralelo do tráfico que antes achávamos distantes e no periférico, hoje está dentro de nossas casas. Distâncias deixam de existir, mas as pessoas se isolam em sua realidade, porque o real é virtual. A mestiçagem faz parte da nossa história e vale para todos. Alemão com francês é mestiço. Índio com branco é mestiço. Mas não colocamos a palavra mestiço no censo.

A sociedade se tornou uma torre de Babel. Todos têm acesso à comunicação, mas ninguém fala a mesma língua. Não importa a religião, o que importa é a visibilidade de templos. Como pensar o mundo com toda essa influência? Que esta reflexão esquente a busca de realização neste tempo em que nos é dado viver nesta Casa Maravilhosa que Deus nos deu.

Texto originalmente publicado pela USF- FREI VITORIO MAZZUCO FILHO



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ECOTEOLOGIA- PARTE 14- UNIDADE 4: A ECOLOGIA INTEGRAL E A ECOTEOLOGIA- 1.1FRANCISCO DE ASSIS E O CÂNTICO DAS CRIATURAS – A MÍSTICA DA UNIÃO CÓSMICA- 1.2 1.2 FRANCISCO DE ASSIS, O PATRONO DA ECOLOGIA 15 Apr 11:52 AM (13 days ago)


 1.1 FRANCISCO DE ASSIS E O CÂNTICO DAS CRIATURAS – A MÍSTICA DA UNIÃO CÓSMICA

 Não podemos deixar fora o clássico texto das Fontes Franciscanos, Cântico do Irmão Sol ou Louvores das Criaturas:

Altíssimo, onipotente, bom Senhor, teus são o louvor, a glória e a honra e toda a bênção (cf. Ap 4,9.11). Somente a ti, ó Altíssimo, eles convêm, e homem algum é digno de mencionar-te. Louvado sejas, meu Senhor, com todas as tuas criaturas (cf. Tb 8,7), especialmente o Senhor Irmão Sol, o qual é dia, e por ele nos iluminas. E ele é belo e radiante com grande esplendor, de ti, Altíssimo, traz o significado. Louvado sejas, meu Senhor, pela irmã lua e pelas estrelas (cf. Sl 148,3), no céu as formaste claras e preciosas e belas. Louvado sejas, meu Senhor, pelo irmão vento, e pelo ar e pelas nuvens e pelo sereno e por todo tempo, pelo qual às tuas criaturas dás sustento. Louvado sejas, meu Senhor, pela irmã água (cf. Sl 148,4.5), que é muito útil e humilde e preciosa e casta. Louvado sejas, meu Senhor, pelo irmão fogo (cf. Dn 3,66), pelo qual iluminas a noite (cf. Sl 77,14), e ele é belo e agradável e robusto e forte. Louvado sejas, meu Senhor, pela irmã nossa, a mãe terra (cf. Dn 3,74) que nos sustenta e governa e produz diversos frutos com coloridas flores e ervas (cf. Sl 103, 13.14). Louvado sejas, meu Senhor, por aqueles que perdoam (cf. Mt 6,12) pelo teu amor, e suportam enfermidade e tribulação. Bem-aventurados aqueles que as suportarem em paz, porque por ti, Altíssimo, serão coroados. Louvado sejas, meu Senhor, pela irmã nossa, a morte corporal, da qual nenhum homem vivente pode escapar. Ai daqueles que morrerem em pecado mortal: bem-aventurados os que ela encontrar na tua santíssima vontade, porque a morte segunda (cf. Ap 2,11;20,6) não lhes fará mal! Louvai e bendizei ao meu Senhor (cf. Dn 3,85), e rendei-lhe graças e servi-o com grande humildade. (Cnt)

O Cântico das Criaturas de São Francisco – ou Cântico do Sol – revela-nos as experiências maravilhosas da vida de Francisco com Deus. Nesse escrito, somos instigados a refletir acerca de que o homem deve ter os olhos abertos para a complexidade de tudo o que cerca. Faz-se necessário, assim, a decisão madura, responsável e fundamental de querer a aprendizagem do mergulho religioso na realidade.

Isso posto, somos levados a questionar se, neste mundo segmentarizado, tecnicista, secularizado, opaco, ver a presença a presença de Deus. Afinal, Ele está em toda a parte e presente em todas as coisas e precisamos aprender a vê-Lo em tudo.

Em o Cântico das Criaturas, notamos que Francisco se alinha aos salmistas, santos e cantores bíblicos para exaltar e cantar à natureza e seus elementos. A originalidade de seu Cântico corresponde no simples e singular modo de conceber e valorizar as coisas.

Assim, em seu escrito, Francisco, amparado na ordem cosmológica (os 4 elementos: terra, água, fogo e ar e o geocentrismo da cosmologia antiga) e na ordem profunda da psique, aponta que, enquanto os elementos subjetivos (sol, lua, estrela etc.) exprimem uma mística vibração, eles formam também uma língua com a qual quer se exprimir a união religioso-cósmica de Deus com tudo. O hino, então, simboliza o fim do itinerário espiritual longo de São Francisco de Assim, após vinte anos de sua conversão.

SAIBA MAIS

Conheça, na íntegra, a letra do Cântico das Criaturas disponibilizada pela Organização Franciscanos, no link: Disponível em: https://franciscanos.org.br/carisma/simbolos/o-cantico-das-criaturas#- gsc.tab=0. Acesso em: 25 ago. 2021.

 Francisco de Assis, no auge de sua enfermidade, apesar de perder sangue e estar enfraquecido, sofria mais na alma, pois sabia da medieval cobiçosa cristandade que pairava, cheia de profano e sagrado poder. Eram, assim, na Igreja, em nome do amor de Deus, os valores da simplicidade e da paz.

Foi então que aconteceu o evento de doçura. De volta ao Monte Alverne, nos extremos da fraqueza e da perda das forças, Francisco se detém em São Damião, onde vivia Santa Clara e suas Irmãs. Exatamente na igreja, na qual o Senhor lhe falara e lhe pedira para reconstruir a sua casa em ruínas. Os sofrimentos não lhe davam tréguas.

Por cinquenta dias ou mais, o bem-aventurado Francisco não podia ver a luz do sol de dia nem ver a luz do fogo de noite [...] tinha também grandes dores nos olhos de dia e de noite, de modo que de noite quase não podia descansar e dormir. (CA 83, 8.9)

Uma noite não podendo mais suportar as dores, S. Francisco, em uma atitude de profunda simpatia não só com as coisas, teve grande piedade e pena de si mesmo e disse ao Senhor: “Senhor, vinde em meu auxilio em minhas enfermidades, para que eu as possa tolerar com paciência” (CA 83, 13). Segundo Celano, travou-se uma luta em São Francisco para vencer as dores e a impaciência, orando entrou em agonia. No decurso de tamanha agonia ouve em espírito uma voz que lhe diz:

Dize-me, irmão: se alguém por estas tuas enfermidades e tribulações te desse um tesouro tão grande e precioso que, se toda a terra fosse ouro puro, todas as pedras fossem pedras preciosas e toda a água fosse bálsamo, tu porém considerarias e terias tudo isto como nada como se fossem [apenas] matéria: terra, pedras e água em comparação (cf. Sb 7,9; Sl 18,11) com tão grande e precioso tesouro que te seria dado, por acaso não te alegrarias muito?" E respondeu o bem-aventurado Francisco: "Senhor, este tesouro seria grande, e investigável, extremamente precioso e demasiadamente amável e desejável" (cf. Sl 18,11). E disse-lhe: "Portanto, irmão, alegra-te e rejubila-te bastante em tuas enfermidades e tribulações, porque doravante deves considerar-te tão seguro como se estivesses em meu reino. (CA 83, 14-18)

SAIBA MAIS

Conheça, na íntegra, a intepretação que o Frei Vitório Mazzuco escreve, em “A mística de são Francisco de Assis”, inspirado no momento de escrita da Cântico das Criaturas, sobre a alegria que o invadiu. 

Disponível em: https://ofsabaete.blogspot.com/2013/10/a-mistica-de-sao-francisco-de--assis-12.html. Acesso em: 25 ago. 2021.

Como símbolos do mundo interior, os elementos cósmicos são celebrados, pois as coisas são como invólucro de um profundo discurso, porém, que não se resume na alegorização dos elementos, pois a água continua sendo água, a Lua permanece Lua e o Sol, Sol. Contudo, tais elementos carregam em si, para além de seus valores objetivos, valores simbólicos que auxiliam ao Santo exprimir seu mundo interior, em que tudo é luminoso e está em fraternidade universal serena. Mazzuco (2015, [n. p.]) reitera que

[o]s elementos referidos por Francisco e pelos quais canta o Criador não são simplesmente elementos. Ele os qualifica, dá-lhes adjetivos que expressam a vivência interior que possuía. O sol é radiante e com grande esplendor. O fogo é radiante e robusto, forte e jucundo; água é humilde, preciosa e casta e assim por diante. Esses adjetivos qualificam os elementos. Mais que os elementos qualificam a alma. Nem sempre é verdade que o sol é radiante e de grande esplendor. Ele pode queimar e matar as plantações. Nem sempre a água é humilde, preciosa e casta. A água convulsa do oceano pode matar. A água poluída pode contaminar. O fogo pode queimar e seus danos são irreparáveis.

Para Francisco, os elementos falam através desses adjetivos, pois “[t]oda paisagem é um estado de alma” (BACHELARD, 1978, p. 57), e esta, por sua vez, tem uma experiência. Assim, Francisco sentiria dentro de si a grandiosidade da união com Deus. Limpara, depois de anos de penitência, os olhos para Deus e para as profundezas das coisas, o que o permitia ver Deus em todas as coisas. Essa foi uma conquista longa e dificultosa.

Daí o mundo se transfigurar e tornar-se, para ele, um grande sacramento. Tudo falava de Deus: desde o vermezinho da estrada até o Sol. Quando Francisco chama as coisas de preciosas, para ele essa palavra preciosa não constitui uma grandeza mensurável, um valor como um tesouro, mas exprime a riqueza misteriosa, que não mais pertence ao domínio do ter, mas da realidade do Ser. É a expressão de sua experiência religiosa e sacra que lhe permite ver a sacralidade e a transparência divina do cosmos.

O canto de São Francisco não é um canto romântico. Não canta numinosidade das coisas enquanto coisas, pois ela vem da alma ligada a Deus e a Cristo. Por isso, o canto significa o termo de um longo itinerário espiritual. Quando lhe caíram as escamas dos olhos, então, podia ver Cristo e Deus e entoar o hino da casa paterna, onde todos são irmãos e irmãs, a Terra e o Sol, o fogo e a morte. As coisas ficam coisas, mas isso não esgota a sua realidade.

Elas são símbolos que também expressam a alma. O Universo interior se exprime no universo exterior. Então, tudo começa a falar, a fala do mistério e de Deus.

O surpreendente do cântico é o modo familiar com que Francisco descreve as diferentes realidades cósmicas. O fato podermos chamar a realidade sub-humana de irmão e irmã nos coloca diante de uma maneira diferente de ver o mundo do que aquela, por exemplo, científica. Para a ciência, as coisas são coisas, destituídas de qualquer grandeza humana e numinosidade, porque são nada mais que objetos de nossa conquista e de exercício de nossa vontade de poder. Falta, com isso, o respeito e a grandiosidade do sentir-se junto, dentro de uma mesma casa paterna.

Já em Francisco, as coisas se revestem de grande simpatia. Não havia poesia nisso, as queria dizer a verdadeira realidade das coisas. A realidade profunda das coisas reside no poder estarem todas na casa comum do Pai. Deus é essencialmente Pai.

Dizer que Deus é Pai, não era para Francisco uma doutrina, um dogma teológico, mas sim uma experiência afetiva e estética profunda. Ser irmão e irmã não significa apenas uma verdade intelectual, mas uma verdade psicológica, traduzindo, desse modo, uma verdadeira emoção amorosa, uma fusão afetiva cósmica.

Essa declaração franciscana de irmão e irmã é uma confissão de intimidade e de consanguinidade com as coisas todas, todos estão na casa paterna de Deus. Por isso podemos nos irmanar. Não somos inimigos. Nada nos ameaça. Estamos na atmosfera do aconchego e do carinho dos irmãos e das irmãs. Isso é o ser profundo em tudo.

Francisco de Assis defende que os elementos: “levam de ti, Altíssimo, o sinal”, isso porque ele é muito sensível aos símbolos. Celano conta como Francisco tinha respeito para com a luz e o fogo, símbolos da Luz Eterna. Por isso, deixava arder as lanternas, as lâmpadas e as velas. Caminhava com veneração sobre as pedras, com respeito. Aquele que foi chamado de Pedra. Os elementos do Cântico ao Senhor Irmão Sol são a expressão dessa vivência interior e sacra.

Uma das coisas mais características no Cântico é o feminino e o masculino, que surgem como símbolos da unidade e da totalidade psíquica do humano. Basta observarmos o binômio masculino e feminino: irmão Sol; irmã Lua e estrelas; irmão vento; irmã água; irmão fogo e irmã terra.

Esse casal cósmico não é constituído arbitrariamente. São combinações do inconsciente em busca de uma unidade radical religioso-cósmica. É uma linguagem que exprime esse afã humano. Um outro elemento ressalta claramente isso: O irmão e senhor Sol e a irmã- mãe Terra. O Sol é símbolo da virilidade e paternidade, do elemento germinador e fecundante. A Terra, nossa Mãe, é por excelência o símbolo da vida, da fecundação que sustenta e nutre todos os viventes. Todos os demais elementos são encerrados dentro destes dois, da paternidade e da maternidade.

O Cântico das Criaturas foi composto no outono de 1225 e contém duas estrofes que foram acrescentadas posteriormente. Sua penúltima estrofe, escrita em julho de 1226, celebra o perdão e a paz alcançados pelo santo que mediou uma rixa entre o prefeito e o bispo de Assis. E a última estrofe celebra nossa irmã a morte corporal e foi inspirada pouco antes do trânsito de São Francisco, nos primeiros dias de outubro de 1226.

Elas se destacam do hino, em que não mais o cosmos que é cantado, mas o cosmos humano, inserido dentro da fraternidade cósmica. É uma fraternidade conquistada entre tensões e sofrimentos, graças a um amor que supera o ódio e a angústia da morte. São Francisco quis acrescentá-las ao canto. Elas, na verdade, fazem-lhe parte e se originam da mesma inspiração fundamental.

O hino, então, quer cantar e comemorar a união mística de tudo com Deus. Como não podia deixar o humano fora, na sua tribulação, o hino se abre ao mundo humano, estigmatizado por conflitos e pela angústia da morte. O mundo cósmico não seria totalmente reconciliado no matrimônio universal se não inserisse o mundo humano. O humano se concilia com o outro humano e, ainda, reconcilia-se com a morte, aceitando a sua existência mortal. Integra, assim, a morte à vida. Aceita-a não como uma bruxa má, mas como a irmã que nos introduz na casa da Vida e do Amor.

Quanto à estrutura do Cântico, convém ainda notarmos que nele se cruzam as duas linhas a horizontal e a vertical. Começa com a vertical: “Altíssimo e bom Senhor! ”. Altíssimo é a expressão do Voo do Espírito para o Alto. Aqui se resume a grande experiência de Francisco. “E ninguém é digno de mencionar teu nome”. Esta expressão exprime a pobreza total de nossas palavras frente ao Altíssimo. Nenhum louvor, nada pode exprimir o mistério de Deus. São Francisco o sabe, não por um saber teológico, mas por uma experiência total, vital, afetiva.

Não podendo cantar o Altíssimo volta-se às criaturas: “Louvado sejas, meu Senhor, por todas as tuas criaturas! ” Renuncia à Transcendência, mas canta o mundo a partir da Transcendência. O universo visível será o caminho para o Sacro, para o Totalmente Outro, porque “de ti, Altíssimo, porta o Teu sinal”. Portanto o movimento inicial era totalmente vertical: cantar Deus.

Em seguida, ele se reduplica e se volta às criaturas, abre-se para a fraternidade universal conquistada pela experiência do verticalismo, da mesma filiação divina. Indigno de sequer nomear o nome de Deus, sente-se na mesma filiação, na mesma pobreza criacional de todas as coisas. Ele começa do Alto, Deus, desce para os elementos mais preciosos, o sol, depois desce aos mais humildes, como o vento, a água, e acaba na mãe terra. O canto termina com a frase expressiva, no coração do mundo: “Louvai e bendizei ao meu Senhor e rendei-lhe graças e servi-o com grande humildade!”. Ele canta as criaturas porque elas são para Francisco carregadas de valor simbólico do Altíssimo.

O Cântico é, primeiro, uma vivência interior de Deus que se extravasa no exterior, sobre o cosmos. Estando largamente disponível aos apelos do Altíssimo, ao mais Alto dos céus, aceita a comunhão fraterna com a nossa terra, que nos sustenta e governa. Esse caminho de grande humildade e de comunhão fraterna se transforma em um caminho de profunda reconciliação com tudo, até com a morte. Com isso, alcança a máxima libertação, integrando tudo dentro da vida, inclusive a morte.

E Francisco conseguiu essa profunda reconciliação, porque ele comove e seduz toda a humanidade. O esplendor do humano e sua tragédia, sua ânsia de ascensão e seu enraizamento na terra, sua dimensão urânica (céu) e a sua dimensão telúrica (terra) encontram nele um intérprete privilegiado.

"Altíssimo, onipotente, bom Senhor, teus são o louvor, a glória e a honra e toda a bênção. Somente a ti, ó Altíssimo, eles convêm, e homem algum é digno de mencionar-te” (Cnt). Essa primeira estrofe é o hino do silêncio diante do mistério inefável. O Altíssimo atrai todas as energias do louvor e da adoração. Só Ele é digno de todos os títulos. Por isso é o Bem Total, o Sumo Bem, Todo Bem.

Francisco despojou-se não só de seus bens, mas também da vaidade pessoal, dessa terrível vaidade farisaica que torna as pessoas virtuosas (não confundir com santas), pequenos tiranos, senhores e deuses para si próprios e para os outros. Por isso ele defende aqui que de Deus são os louvores, a glória, a honra e todo o bendizer. Estaríamos inclinados a pensar que é o humano que louva e dá glória e honra a Deus. Então não sou eu que louvo e honro, mas é Deus que louva e honra em mim e através de mim. Em vista disso, conseguimos compreender o que leva São Francisco a prescrever aos Irmãos na primeira Regra, o seguinte pedido:

Por isso, na caridade que é Deus (cf. 1Jo 4,16), suplico a todos os meus irmãos que pregam, que rezam e que trabalham, tanto aos clérigos quanto aos leigos, que se esforcem por humilhar-se em tudo e por não se gloriar nem se regozijar consigo mesmos nem se exaltar interiormente das boas palavras e obras, e menos ainda, de nenhum bem que Deus muitas vezes faz ou diz e opera neles e por eles, segundo o que diz o Senhor. (RnB XVII, 5-6)

Sabemos da psicologia de São Francisco, ardente e fogosa, que ele queria o que queria, com grande paixão e profundidade. Como jovem nutria uma paixão imensa, queria ser grande e ser conhecido no mundo. Sonhava em se tornar um grande cavaleiro, um príncipe. Depois, sua ambição se espiritualizou, mas não permaneceu menos ambiciosa a Vida Secunda, narra Celano, que um dia Francisco, já convertido, pergunta aos irmãos: “De que coisa pensais vós que eu mais me alegro?” e ele mesmo responde:“Serei venerado como santo por todo o mundo”. Ao longo da vida, contudo, ele foi redescobrindo cada vez mais o mistério de Deus. A palavra Altíssimo e ninguém é digno de mencionar teu nome, revela sua alma não mais possessiva e ambiciosa. Não renuncia ao Altíssimo, renuncia à posse do Altíssimo.

Na primeira estrofe, o Cântico das Criaturas revela duas tanto a paixão de Francisco para o alto, como também para o mistério. Mas essa paixão é livre de toda ambiguidade, purificada de todo o desejo de poder e vontade possessiva. Está nu e pobre diante de Deus.

Só Deus é Deus. Só Deus pode falar a linguagem do divino. E Francisco deixa Deus ser Deus, sem querer enquadrá-Lo dentro de categorias humanas. Abre então outro caminho, o caminho da humildade, da encarnação nas criaturas.

Diante do inefável, deve-se imperar o silêncio. Mas como o humano não é pedra, ele fala. Seu falar, contudo, a partir do Inefável e Altíssimo, deverá desembocar de onde veio: do Altíssimo. Mas tem-se que, ao falar, deixar o mistério falar através de sua fala. São Francisco fala das criaturas. Canta, contudo, de uma forma que elas falem sempre do Inefável, do Altíssimo do qual são sinais. O verso “Louvado sejas, meu Senhor, com todas as tuas criaturas” mostra a transição do silêncio para a fala que deve articular o silêncio.

Para São Francisco, todas as criaturas, como expressa o hino, são o lugar da revelação do Altíssimo. O mundo material tem valor e, por isso, não perde sua dignidade, embora o Altíssimo exceda infinitamente. Como ele não quer cantar sozinho, ele canta com as criaturas. À vista disso, notamos o espírito não possessivo de São Francisco. Não é ele que canta por nem através das criaturas. Elas já cantam por si só. Ele se une a elas e louvar. Irmana-se e confraterniza-se. 

Celano frisa que “[...] nunca se viu tanto afeto para com todas as criaturas” (1Cel 80). E continua:

[e]nfim, chamava todas as criaturas com o nome de irmãos e, de maneira eminente e não experimentada por outros, percebia com agudeza as coisas ocultas do coração das criaturas, como quem já tivesse alcançado a liberdade gloriosa dos filhos de Deus. (1Cel 81)

Na literatura provençal, a qual Francisco admirava, descobria a canção do encantamento pela dama e a efusão emotiva do amor. Francisco soube depurar essa corrente que o influenciou tanto, de todo o peso, de toda a ligação nervosa com a terra e com a Dama, para conservar-lhe o ritmo essencial que incluía a canção até a morte e o sofrimento.

Sua relação profundamente humana com Clara, mostra a maravilha como ele integrou o feminino e o encantamento do amor. O eros foi libertado de todo o peso e transformado em gape, sem perder toda sua profundidade psicológica. Isso nos ajuda a compreender aexpressão cantar com todas as criaturas. O cantar “com grande humildade” alude à superação de todo o ressentimento contra nossa arqueologia. Une-se com o cosmos, com o mais baixo até o mais alto, para juntos cantarem o Inefável.

A celebração do Sol: “Louvado sejas, meu Senhor, com todas as tuas criaturas, especialmente o senhor irmão sol, pois ele é dia e nos ilumina por si. E traz de ti, Altíssimo, o sinal”. Cantar o Sol é um tópos comum da poesia e de todo hinário religioso cristão e pagão.

Nesse sentido, Francisco se insere em uma experiência comum que o transcende. O Speculum Perfectionis nos informa que Francisco considerava o Sol o mais belo de todas as criaturas e de forma melhor recordava Nosso Senhor Jesus Cristo e Deus, chamado pela Escritura de Sol da Justiça (1EP 119). No Sol, Francisco via o sinal de Deus e, por isso, ele o entendia como um convite permanente para a memória do divino.

De manhã, ao nascer o Sol, cada homem deve louvar a Deus que criou o Sol para nossa utilidade, pois é por ele que nossos olhos possuem a luz (1EP 119). Ele, mesmo cego – de uma cegueira de que foi tomado depois de uma viagem pelo oriente –, não deixava de cantar ao irmão Sol e guardava sua luz interior e sua força evocadora.

O senhor irmão Sol não é uma imagem material, guardada no interior, mas ela emerge das profundezas da alma, e aponta para algo mais sublime. Para descobrir algo de mais sublime precisamos penetrar um pouco mais na intimidade do elemento. Primeiramente, o sol é saudado como fonte de luz: dele vem o dia, é belo, radiante, cheio de esplendor. Ele é chamado de senhor, por participar da nobreza do mundo. Ele é senhor. Senhor era uma expressão que Francisco reservava para Deus e Jesus Cristo.

Começa com o elemento masculino e encerra com o elemento feminino. Esse casal é uma imagem mística antiga. Nos cultos solares das religiões arcaicas, o sol é considerado como elemento masculino, como o grande Senhor, esposo da terra. Da união de ambos é que nasce a vida, e todas as coisas.

 São Francisco chamava o sol não apenas de Senhor, mas também de irmão. Aqui há um elemento novo. O Sol é criatura também, embora o seu conteúdo simbólico seja profundo. Além de Senhor é irmão e, com isso, estabelece uma consanguinidade e fraternidade com ele. Assim como o sol é divino e sinal do divino, o é também o humano, seu irmão. O sol é, pois, o arquétipo da profundidade da alma. As grandes experiências do inconsciente, a irrupção do divino se faz sempre entre luz e fogo. Por isso, São Francisco, na noite em que soube, entre dores quase mortais, que seria participante do Reino dos Céus, entoou um hino ao irmão sol.

O sol é símbolo do Altíssimo e, ao mesmo tempo, fraterno. Um sol ao mesmo tempo sacro e íntimo. O sol é a expressão de uma plenitude interior, que irmana todas as coisas, penetra tudo, ilumina tudo, desde as montanhas até o último cisco da estrada, desde o homem até o verme, é por excelência o símbolo da grandeza de Deus. Sem se macular ele reluz no esterco, sem se orgulhar, espelha-se nas águas. Conserva sua identidade suprema.

A nossa irmã terra, a nossa irmã e mãe terra: “Louvado sejas, meu Senhor, por nossa irmã e mãe terra, que nos alimenta e governa e produz variados frutos e coloridas flores e ervas”. O humano tem a experiência da terra como mãe, com capacidade maternal inexaurível de todos os frutos. Ela nos “sustenta e governa” como a mãe sustenta e governa a criança: produz variados frutos, expressa o verso. Francisco nomeia ervas e flores. Ela não se contenta em nutrir os filhos, mas como mãe bondosa ela nos enche de beleza: os verdes e as flores são a festa da terra mãe; são a alegria dos olhos e da alma, formam o reino da beleza e da graça; constituem o sorriso da terra na extensão do cosmos. São Francisco dava tanta importância ao verde e às flores (2Cel 165). Isso é um símbolo de sua fineza de alma e sensibilidade poética e estética.

Ele chama a terra de mãe e de irmã e confere à terra uma nova dimensão. Ela é mãe, sim, porque nos sustenta, mas não é fonte absoluta da vida. Por si só é uma criatura e, por isso, é como as demais realidades cósmicas. E por isso irmã, que depende, como cada um de nós, do mesmo Altíssimo Pai.

A terra em Francisco ocupou o lugar privilegiado como expressão simbólica. Basta ver os lugares nos quais se situam os conventos no vale de Rieti, do La Verna, em Assis: sempre os mais soberbos, onde as paisagens eram mais luxuriantes e evocadoras. Sua experiência mística foi desenvolvida em contato com a terra. Primeiro nas cavernas, onde, depois de sua conversão em Assis, retirava-se com frequência para uma caverna próxima, em que dizia, respondendo aos amigos, ter encontrado um rico tesouro.

Em seguida, em Poggio Bustone, no vale de Rieti, e no La Verna. O mundo e o universo da caverna são o universo interior, profundo, cheio de sombras e ressonâncias. A caverna é símbolo materno. Assim, entrar na caverna para se encontrar é entrar no ventre materno. Habitar na caverna é participar na vida da terra, no seio da mesma mãe terra. Na caverna, o humano está em sua profundidade e em sua unidade radical. 

Sua relação profunda com a terra se exprimiu de forma exemplar quando Francisco estava moribundo. Queria morrer nu sobre a terra. Celano conta que, quando Francisco estava para morrer, chamava todas as criaturas para o louvor de Deus, exortando-as ao divino amor com os versos que havia composto. E aos Irmãos dizia:

Quando virdes que cheguei ao fim, como me vistes nu anteontem, assim colocai-me sobre a terra e deixai- me jazer deste modo, já defunto, por tão longo espaço de tempo que alguém poderia percorrer devagar a extensão de uma milha. (2Cel 217)

O ato de deitar-se nu sobre a terra pode exprimir o seu grau de pobreza, de nudez diante de Deus, como Cristo na Cruz, nu distendido no madeiro. O gesto possui, certamente, um significado mais profundo: significa a união e a adesão à nossa mãe e irmã terra.

O Cântico das Criaturas é o hino que celebra a reconciliação paradisíaca do humano com a totalidade de suas relações com Deus, o Inefável, com o cosmos, com seu irmão e irmã, com os outros na paz fraterna e com a morte aceita como irmã. Há no hino um apelo total à confraternização.

O que aparece no Hino é o problema humano, sempre antigo e sempre atual do humano buscando a unidade de todas as coisas, mesmo com as realidades mais dramáticas como a morte. E se entoa então o hino de louvor. O humano de hoje dificilmente canta as coisas. Ele canta a si mesmo a propósito das coisas. Não deixa as coisas serem coisas, e faz delas um prolongamento do humano e de sua subjetividade que procura conquistar e poder.

O Cântico das Criaturas mostra que a unidade não pode ser constituída sem uma comunhão cósmica, sem uma comunhão com as raízes cósmicas de nossa vida interior e exterior. Tudo deve ser um crescimento total, porque tudo deve desabrochar no louvor de Deus.

O humano moderno está condenado – e isso funda sua fatalidade – a dominar a natureza. Deve combater as doenças e organizar a satisfação de suas necessidades fundamentais. Mas deve ter o cuidado, porque, uma coisa é cultivar a terra e experimentar como ela é mãe generosa, outra é a destruição do solo sem respeito e veneração.

A visão franciscana procura respeitar as coisas sem deixar que elas fiquem outra coisa que coisas. Mas procura ouvir a canção essencial que cada coisa entoa para Deus. E tenta, bem ou mal, unir-se nessa Canção perene ao Criador.


1.2 FRANCISCO DE ASSIS, O PATRONO DA ECOLOGIA

A proclamação de São Francisco de Assis como Patrono da Ecologia mostra que a religião não é displicente no que se refere às questões ambientais. Não pode existir uma força espiritual desvinculada da terra. Logo, não podemos assumir que ecologistas não possuam uma mística e não queiram se aproximar das grandes religiões e dialogar com elas sobre o compromisso de preservar a natureza. 

São Francisco de Assis tem bilhete de entrada em todas as religiões quanto ao seu modo de interagir com tudo e todos. Com a Carta Apostólica Inter Sanctos, o Papa São João Paulo II, proclama Francisco de Assis o celeste padroeiro dos cultores da Ecologia,

[e]ntre os santos e preclaros varões que respeitaram a natureza como maravilhoso presente que Deus fez ao gênero humano, figura merecidamente São Francisco de Assis. Pois com sensibilidade singular ele apreciava todas as obras do Criador e, como que divinamente inspirado, criou este admirável “Cântico das Criaturas”, as quais, o irmão sol sobretudo, e a irmã lua como as estrelas do céu lhe davam ensejo de render devidamente louvor, glória, honra e toda a benção ao altíssimo, onipotente e bom Senhor. Estava, pois, muito bem avisado o nosso venerável Irmão Sílvio Oddi, Cardeal da Santa Romana Igreja e Prefeito da Sagrada Congregação para os Clérigos, quando, fazendo-se porta-voz principalmente dos membros da Associação Internacional chamada “Planning environmental and ecologycal Institute for quality life”, pediu a esta Sé Apostólica que São Francisco de Assis fosse declarado padroeiro junto de Deus daqueles que se empenham pela Ecologia. E nós, de acordo com a Sagrada Congregação para os Sacramentos e o Culto Divino, em virtude destas Letras, válidas para todo o sempre, proclamamos São Francisco de Assis, padroeiro celestial de todos os cultores da Ecologia, com todas as honras e respectivos privilégios litúrgicos. (JOÃO PAULO II, 1979, [n. p.])

A figura de São Francisco descentraliza, em parte, a religião do antropocentrismo e abraça a natureza, não como domínio, mas como convivência. Francisco de Assis mostra um caminho alternativo, um jeito cristão de voltar às raízes da criação. A sua visão de pobreza como partilha, e de ter tudo em comum, ajuda a conscientizar os abusos da degradação e do desperdício. Francisco se faz pequeno, um Menor entre os mínimos, e tira a onipotência dos que querem dominar a terra.

Se há crítica às religiões, há uma unanimidade quanto a Francisco. José Antônio Merino (2007, p. 49) expõe que, em surgiram, em defesa da mensagem bíblia como “promotora egrégia da causa ambiental”, após os ataques de cientistas à religião judaico-cristã. O autor frisa que

[a]s igrejas cristãs tomaram-no tanto a sério que celebraram magnas assembleias nacionais e internacionais para debater o problema ecológico. A partir da década de setenta até hoje, tanto as igrejas cristãs particulares como as assembleias ecumênicas internacionais têm-se reunido todos os anos, ou cada dois anos, para analisar o grande problema ambiental e suas causas, e assim poderem oferecer uma resposta simultaneamente religiosa e científica, pois participavam cristãos nas ditas reuniões. Aqui, sobressaia frequentemente Francisco de Assis como modelo a seguir para a educação do ser humano no seu comportamento com a natureza, nestas assembleias, Francisco emergia como cristão modelar relativamente aos problemas ambientais. (MERINO, 2007, p. 49)

De tais encontros, surgiu, em 1989, declarações no Documento Final da Assembleia Ecumênica de Basileia em defesa do meio ambiente, em que as taxas de fome, degradação ecológica, em virtude das condições de vida precária, insegura e insuportável em que vive uma grande parcela da população mundial. Merino (2007, p. 51) sublinha que, em vista de tais perspectivas, os responsáveis pelas situações ecológicas negativas atuais devem se conscientizar e se responsabilizarem, investindo nos três princípios da ecologia: (1) “[...] salvar o que pode ser salvo” (2) “[...] travar os efeitos nefastos que se estão a verificar e impedir que apareçam outros” e, por fim, mas não menos importante, (3) “[...] reconstruir ecologicamente os elementos do meio ambiente prejudicados ou destruídos”. 

Mais um texto da Assembleia Ecumênica de Seul de 1990:

A resistência à desintegração da criação deve converter-se na prioridade universal da nossa época. É um desafio que não tem antecedentes históricos, pois a humanidade e a ecos-fera converteram-se agora em uma comunidade de sobrevivência interdependente. Está em jogo o próprio futuro da vida. É necessário estabelecer uma ordem ecológica internacional, se quisermos ter futuro. Exortam-se os cristãos a trabalhar para conseguir esta ordem e a examinar de novo o seu pacto com o Criador e cuidador de toda criação. (MERINO, 2007, p. 51

SAIBA MAIS

Em complemento ao exposto até aqui sobre as posturas de conscientização orientadas para, de certa forma, reparar os danos causados a nossa mãe terra, indicamos a leitura das páginas 51 a 53 do livro São Francisco e a Ecologia, escrito por Merino, em 2007, nas quais o autor não só descreve a relação da igreja com a ecologia, mas também salienta a postura exemplar de respeito e compaixão de Francisco de Assis com a natureza.

Merino (2007, p. 53) também postula que “Francisco não é uma teoria sobre o mundo, é uma utopia no mundo. Não uma simples recordação, mas uma provocação que põe em causa a consciência que vive segundo os imperativos habituais de uma ética de consumismo, do usar e jogar fora. A sua arte de viver e de estar no mundo e com as coisas é o convite a criar um diálogo universal para além dos pressupostos científicos e antropológicos da subjetividade e da objetividade, do externalismo e do internalismo, do materialismo e do espiritualismo”.

Fonte: MERINO, J. A. São Francisco e a Ecologia. Braga: Editorial Franciscana, 2007.

Texto originalmente publicado pela USF- FREI VITORIO MAZZUCO FILHO




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ECOTEOLOGIA Parte 13- UNIDADE 4: A ECOLOGIA INTEGRAL E A ECOTEOLOGIA - 1. A INSPIRAÇÃO DE FRANCISCO DE ASSIS 15 Apr 11:18 AM (13 days ago)

 

INTRODUÇÃO

O mundo da espiritualidade é inesgotável e abraça a nossa dimensão de corpo, com o qual nos enraizamos e andamos para ter contato com tudo o que existe em nosso planeta terra e em todo o universo. Não basta só cuidar do corpo físico, é preciso cuidar da totalidade do ser humano, corpo, mente, espirito.

Quando olhamos as experiências contemporâneas, temos a impressão e a quase certeza de que o ser humano se ocupa mais do corpo físico, pois as academias de ginástica são mais frequentadas do que os templos. Temos também o cuidado da dimensão psicológica através do acompanhamento clínico e terapêutico dos psicólogos que ajudam a equilibrar e a fecundar as forças do humano. Queremos tratar das forças do espírito, pois

[...] temos também o mundo do espirito. É o mundo do profundo em nós, aquela dimensão que nos permite sentir que somos parte de um Todo maior e que nos concede perceber que por detrás de todas as coisas e do inteiro universo há uma Presença, uma Energia poderosa e amorosa que tudo sustenta e confere sentido a cada gesto [...]. Desse profundo irrompem as grandes perguntas: de onde venho? Para onde vou? Qual o sentido da minha passagem por esta Terra? Quem se esconde atrás das estrelas e as sustenta? O que posso esperar depois desta vida? Estas questões nos acompanham ao largo de toda vida. Esse mundo do espirito é feito de amor, de solidariedade, de compaixão, de convivência pacífica com os outros, de beleza e de êxtase diante da grandeza do universo. Se cultivarmos esses valores da vida do espírito, não haveria inimizades, discriminações, nem guerras entre os povos [...] A espiritualidade é uma dimensão de cada ser humano, mesmo de quem não possui nenhuma expressão religiosa, mas busca viver no amor, na solidariedade e na compaixão, especialmente para com aqueles que sofrem. Este é um ser espiritual. Quanto mais espiritual, mais irradia bondade e todos se sentirão bem junto dele. (BOFF, 2017, p. 78-79)

 A ecologia integral e a ecoteologia nos permitem esta experiência: Deus e sua Força que entra em nós com a sua essência em todas as coisas. À vista disso, nesta Unidade faremos um percurso pelo paradigma franciscano, tendo como referência São Francisco de Assis, aceito por todas as experiências religiosas e espirituais como aquele que antecipou a consciência e a prática da fraternidade universal e do universalismo fraterno. Temos também que apontar uma espiritualidade que une todas as coisas, todos os seres em um encontro, em uma grande reverência.

Vê-se, pois, como é falsa a afirmação de alguns, de que era indiferente para as verdades da fé o que se pensasse a respeito das criaturas, contanto que se pensasse retamente sobre Deus, como nos relata Agostinho (IV Sobre a Alma e sua Origem 4; PL 44, 527). O erro acerca das criaturas redunda em falsa ideia de Deus e, ao submeter as mentes humanas a quaisquer outras coisas, afasta-as de Deus, para quem a fé as quer encaminhar. (TOMÁS DE AQUINO II, III, 5 869)

1. A INSPIRAÇÃO DE FRANCISCO DE ASSIS

Francisco de Assis que viveu entre 1182 e 1226, no século XIII, é inspirador de um novo modo de viver, uma nova forma de vida a partir da Boa Nova, o Evangelho. Por buscar a novidade do Evangelho, não está satisfeito, nem se identifica com os valores de sua época e da sociedade onde vive em Assis, na Itália.

Por ter um ideal grandioso, Francisco começa a conviver com o grandioso presente nos detalhes da vida, assim, passa a ser considerado um louco na sua cidade, mas resgata valores adormecidos. Deixa a casa de seu pai, Pedro Bernardone, homem rico e empreendedor, para viver pobre e totalmente despojado de bens materiais, pois havia encontrado a única riqueza que satisfaz o seu coração: o Amor pelo Todo e por tudo e todos.

Francisco de Assis falava de Deus a partir de suas obras. Foi um andarilho pelas estradas e paisagens da Úmbria e aí tem mais sintonia com a obra criada e com o Criador.A espiritualidade que vai se instaurando em seu coração passa pelo filtro da Palavra e da natureza. Em virtude disso, o biógrafo Tomás de Celano descreveu que Francisco

[t]ransbordava em espírito de caridade, tendo entranhas de compaixão não só para com os homens que sofriam necessidade, mas também para com os animais privados de fala e de razão, répteis, pássaros e demais criaturas sensíveis e insensíveis. Mas, entre todas as espécies de animais, amava com especial afeição e mais pronto afeto os cordeirinhos, pelo fato que a humildade de Nosso Senhor Jesus Cristo nas Sagradas Escrituras é frequentemente comparada e mais convenientemente adaptada ao cordeiro. Assim também, abraçava mais carinhosamente e via mais prazerosamente todos aqueles [animais] nos quais principalmente pudesse ser encontrada alguma semelhança alegórica com o Filho de Deus. (1Cel 77)

Diante da criação, ele é um ser maravilhado e agradecido, pleno de louvores e cuidado. Une em sua vida a partilha e a celebração. Ele está imerso na vida e a integra. Quem está plenamente na vida não a destrói. Tem-se assim uma relação pessoal e fraterna com tudo e todos.

SAIBA MAIS

Conheça mais a respeito da vida e da obra de Francisco de Assis, por meio da escrita de São Tomás de Celano, em Primeira Vida (1Cel 80-81), no capítulo 29 – Do amor que, pelo Criador, dedicava a todas as criaturas, e da descrição de sua personalidade e de seu aspecto exterior.

Disponível em: http://centrofranciscano.capuchinhossp.org.br/fontes-leitura?id=- 1843&parent_id=1760. Acesso em: 25 ago. 2021.

 Para Francisco, as criaturas não são coisas, são alguém, ele as personalizava chamando-as de Irmãos e Irmãs e as integrava a Fraternidade com muito afeto. É famosa a passagem que relata, quando ao andar pelos caminhos, tinha um imenso respeito por todos os seres. Não atropelava a vida, mas andava de leve dentro dela:

Tendo pressa de sair deste mundo como de um exílio de peregrinação, este feliz itinerante era auxiliado pelas coisas que estão no mundo (cf. Jo 17,11.16), e realmente não pouco. Usava o mundo como campo de batalha contra os príncipes das trevas (cf. Ef 6,12), mas também o usava, com relação a Deus, como espelho limpidíssimo de sua bondade (Sb 7,26). Em qualquer obra de arte ele exalta o Artífice e atribui ao Criador udo o que descobre nas coisas criadas. Exulta em todas as obras das mãos do Senhor (cf. Sl 91,5; 8,7) e intui, através dos espetáculos do encanta mento, a razão e causa que tudo vivifica. Reconhece nas coisas belas aquele que é o mais Belo; todas as coisas boas (cf. Gn 1,31) lhe clamam: "Quem nos fez (cf. Sl 99,3) é o Melhor". Por meio dos vestígios impressos nas coisas ele segue o amado (cf. Jó 23,11; Ct 5,17) por toda parte e de todas as coisas faz para si uma escada para se chegar ao trono (cf. Jó 23,3) dele. (2Cel 165)

A todas as coisas, Francisco, afetuosa e devotamente, abraça e caminha, com reverência, sobre os chamados irmãos Pedra, a pedra que lhes acolhe os pés em suas jornadas. Por amor e respeito aos animais, proíbe que seus irmãos e irmãs aniquilem o habitat dos animais, e aconselha que, ao invés de retirar, que fossem plantadas outras espécies de árvores, de plantas, flores para que fossem cultivados e admirados por todos. Assim, sob a inspiração de Francisco, temos que viver como ele a relação com a natureza.

IMPORTANTE

São Boaventura aponta que Francisco tinha um amor cómico e vivia em um estado de inocência, como na “[...] ocasião, em Greccio, fora oferecida ao homem de Deus uma pequena lebre viva que, colocada livre no chão, como pudesse fugir para onde quisesse, tendo-a chamado o pai benigno, ela lhe saltou em uma corrida veloz ao regaço. Ele acariciando-a com piedoso afeto do coração, parecia compadecer-se dela como uma mãe e, admoestando-a com doce exortação a que não se deixasse capturar de novo, permitiu que ela partisse livre. E, muitas vezes colocada no chão para se retirar, como ela voltasse sempre ao regaço do pai, como se percebesse com um certo sentido oculto a piedade do coração dele, finalmente, por ordem do pai, ela foi levada pelos irmãos a lugares solitários e mais seguros”. (LM 8, 8s).

O Espelho da Perfeição afirma que Francisco tinha “[...] um entranhado amor às criaturas” (2EP 113). Simpatia e reciprocidade, “[...] as próprias criaturas irracionais conhecem o afeto de piedade e pressentissem o terno amor dele para com elas” (1Cel 59). É a relação humana com a dimensão criatural. José Antônio Merino (2007, p. 13) acentua que Francisco não amava à natureza de modo abstrato, nem tão pouco de maneira anônima, convencional ou impessoal, por isso tratava a todo ser vivente com cortesia, “[...] respeitando sempre a sua própria individualidade, a sua peculiar maneira de ser e o seu privilegiado lugar no cosmos” (MERINO, 2007, p. 13). Assim, ele e se abria, de modo empático todos os seres se abriam para ele em fraterna e singular sintonia.

Texto originalmente publicado pela USF- FREI VITORIO MAZZUCO FILHO



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ECOTEOLOGIA- PARTE 12-UNIDADE 3: ESPIRITUALIDADE RESPONSÁVEL EM FACE À DEGRADAÇÃO DA NATUREZA- CONCLUSÃO 20 Feb 2:14 PM (2 months ago)

 


Nesta Unidade, deixamos o olhar espiritual ser o olho que vê onde a realidade precisa de nós como contemplação na ação. O Mistério do Criador está em todas as nuances da vida, nas plantas, nos caminhos, nas paisagens, no orvalho e nos presenteia em cada amanhecer e anoitecer com a obra da criação. É preciso, então, encontrar essa verdade em todas as coisas. São Boaventura afirma que “[a] contemplação é tanto mais elevada quanto mais o ser humano sente em si mesmo o efeito da graça divina ou quanto mais sabe reconhecer Deus nas outras criaturas” (in Sententiarum, 23,2-3).

O mundo é bom, porque Deus é o Sumo Bem. Nas coisas ínfimas, Ele é grande, nas coisas grandiosas, Ele se esconde com simplicidade absoluta. Temos que experimentar o que liga Deus a todos os seres vivos, essa mediação entre o natural e o sobrenatural. Na Laudato Sì, o Papa Francisco destaca Francisco de Assis “[...] como exemplo por excelência pelo cuidado pelo que é frágil, vivida com alegria e autenticidade. É o padroeiro de todos os que estudam e trabalham no campo da ecologia, amado também por muitos que não são cristãos” (FRANCISCO, 2015, p. 10).

Todos os biógrafos de São Francisco, como Tomás de Celano e Boaventura de Bagnoreggio, frisam a união que ele tinha com as criaturas, sua ternura, simpatia e extremo cuidado com todas as coisas. Leonardo Boff ( 2021, p. 294) reitera que hoje 

[...] São Francisco se tornou o irmão universal que se situa para além das confissões e das culturas. A humanidade pode se orgulhar de ter produzido um filho com tal amor, com tanta ternura e com tão grande cuidado para com todos os seres, por menores que parecessem. Ele é uma referência espontânea de uma atitude ecológica que se confraterniza com todos os seres, convive amorosamente com eles, os protege contra as ameaças e os cuida como irmãos e irmãs. Ele soube descobrir Deus nas coisas. Acolheu com jovialidade as doenças e as contradições da vida. Chegou a chamar de irmã a própria morte. Estabeleceu uma aliança com as raízes mais profundas da Terra e com grande humildade se unia a todos os seres para cantar, junto com eles e não apenas através deles, louvores à beleza e à integridade da criação.

Mais do que um homem medieval, santo, cristão e católico, Francisco é um arquétipo, ou seja, um modelo a ser admirado, amado, imitado e seguido em seus valores, virtudes e propósitos, porque “[...] penetrou no inconsciente coletivo da humanidade, no Ocidente e no Oriente e de lá anima as energias benfazejas que se abrem à relação amorosa com todas as criaturas, como se estivéssemos ainda no paraíso terrenal” (BOFF, 1986, [n. p.]).

Francisco de Assis foi um homem reconciliado com tudo: com Deus, com as pessoas, com os detalhes da natureza na sua flora e fauna. Não pode ser visto apenas como o santo dos animais, mas sim um ser que disse um sim a vida que está em meio a tudo, nas cavernas, nas estradas, nas florestas, nas cidades, ruas e praças assumindo a vida como ela é.

IMPORTANTE

“Os sacramentos constituem um modo privilegiado em que a natureza é assumida por Deus e transformada em mediação da vida sobrenatural. Através do culto, somos convidados a abraçar o mundo num plano diferente. A água, o azeite, o fogo e as cores são assumidas com toda a sua força simbólica e incorporam-se no louvor. A mão que abençoa é instrumento do amor de Deus e reflexo da proximidade de Cristo, que veio para Se fazer nosso companheiro no caminho da vida. A água derramada sobre o corpo da criança batizada, é sinal de vida nova. Não fugimos do mundo, nem negamos a natureza, quando queremos encontrar-nos com Deus. Nota-se isto particularmente na espiritualidade do Oriente cristão. ‘A beleza, que no Oriente é um dos nomes mais queridos para exprimir a harmonia divina e o modelo da humanidade transfigurada, mostra-se em toda a parte: nas formas do templo, nos sons, nas cores, nas luzes, nos perfumes’. Segundo a experiência cristã, todas as criaturas do universo material encontram o seu verdadeiro sentido no Verbo encarnado, porque o Filho de Deus incorporou na sua pessoa parte do universo material, onde introduziu um gérmen de transformação definitiva: ‘O cristianismo não rejeita a matéria; pelo contrário, a corporeidade é valorizada plenamente no ato litúrgico, onde o corpo humano mostra sua íntima natureza de templo do Espírito Santo e chega a unir-se a Jesus Senhor, feito também Ele corpo para a salvação do mundo’”. (FRANCISCO, 2015, p. 134)

 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

BAUMAN, Z. Vida líquida. Tradução de Carlos Alberto Medeiros. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2007.

BENTO XVI, Papa. Carta Encíclica Caritas in Veritate. 2ªed. São Paulo: Edições Loyola, 2009.

BÍBLIA. Português. Bíblia Sagrada Vozes, 13.ed. Petrópolis: Editora Vozes, 1990.

BOFF, L. Francisco de Assis: saudade do paraíso. Petrópolis: Editora Vozes, 1986.

BOFF, L. O doloroso parto da Mãe Terra: Uma sociedade de fraternidade sem fronteiras e de amizade social. Petrópolis: Editora Vozes, 2021.

CATECISMO da Igreja Católica. São Paulo: Loyola, 2000.

CONFERÊNCIA NACIONAL DOS BISPOS DO BRASIL – CNBB. A Igreja e a

questão ecológica. Leitura ético-teológica a partir da análise crítica do desenvolvimento. São Paulo, Edições Paulinas, 1992.

CONFERÊNCIA EPISCOPAL DO PARAGUAI. Carta pastoral El campesino paraguayo y la tierra. [S. l.], jun. 1983. Disponível em: https://episcopal.org.py/?news=el-campesino-paraguayo-y-la-tierra-12-de-junio-de-83/. Acesso em: 11 mai. 2021.

FRANCISCO, Papa. Carta Encíclica Laudato Si – Louvado Seja – Sobre O Cuidado Da Casa Comum. São Paulo: Editora Loyola, 2015.

FRANCISCO, Papa. Exortação apostólica Evangelii Gaudium. Vatican, nov. 2013.

Disponível em: https://www.vatican.va/content/francesco/pt/apost_exhortations/documents/papa-francesco_esortazione-ap_20131124_ evangelii-gaudium.html. Acesso em: 24 ago. 2021.

MURAD, A. (Org.). Ecoteologia: um mosaico. São Paulo: Editora Paulus, 2016.

NERY, Frei Prudente OFM Cap. Celebração do Ano 2000: Subsídios da Família Franciscana em preparação ao novo milênio. Petrópolis: Editora Vozes, 1999.

Texto originalmente publicado pela USF- FREI VITORIO MAZZUCO FILHO




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ECOTEOLOGIA- PARTE 11-UNIDADE 3: ESPIRITUALIDADE RESPONSÁVEL EM FACE À DEGRADAÇÃO DA NATUREZA- 4. A LUZ QUE A FÉ OFERECE E 5. EDUCAÇÃO E ESPIRITUALIDADE ECOLÓGICAS 20 Feb 2:10 PM (2 months ago)

 


O conhecimento e a inteligência humana não explicam totalmente a vida. Mas a fé é o grande suporte para compreender a existência e oferecer significados. A coerência com o modo de crer defende a vida. Isso porque,

[...] qualquer solução técnica que as ciências pretendam oferecer será impotente para resolver os graves problemas do mundo, se a humanidade perde o seu rumo, se esquece as grandes motivações que tornam possível a convivência social, o sacrifício, a bondade. Em todo o caso, será preciso fazer apelo aos crentes para que sejam coerentes com a sua própria fé e não a contradigam com as suas ações; será necessário insistir para que se abram novamente à graça de Deus e se nutram profundamente das próprias convicções sobre o amor, a justiça e a paz. (FRANCISCO, 2015, p. 117)

Os habitantes da terra, em sua maioria, pertencem a uma religião, e as religiões dialogam muito pouco sobre o cuidado da natureza, a defesa da vida, a defesa dos pobres. Se as religiões são espaços organizados da fé, tem que dialogar com a ciência para mostrar as iluminadas compreensões da fé, para não fechar os caminhos do saber e de crer. Nos movimentos ecologistas a mística deve estar presente para que equilibre as lutas ideológicas. A fé inspira a busca do bem comum, pois há uma inspiração nas realidades.

5. EDUCAÇÃO E ESPIRITUALIDADE ECOLÓGICAS

Para que serve a educação? Para colocar a humanidade em um caminho seguro, mais evoluído e transformado. E a espiritualidade? Ela nos desperta para uma origem comum que vem do mesmo Sopro, de uma pertença a dimensão espiritual e criatural, de uma vida que deve ser partilhada. Educação e espiritualidade geram novas certezas, atitudes, desafios culturais, educativos e espirituais que equilibram e põem freios na mentalidade apenas consumista e acumulativa.

A educação e a espiritualidade despertam para uma vivência mais comum para tirar o isolamento que vem do uso errado das mídias, da autorreferencialidade e de um certo egoísmo que torna as pessoas muito consumistas. Se há um vazio, ele tem que ser preenchido. Sem valores espirituais e educacionais este vazio é preenchido por objetos de consumo que mostram um estilo de vida. Tem pessoas que entram em crise existencial se não tem um celular de última geração. Contudo, nas palavras do Papa,

 [...] nem tudo está perdido, porque os seres humanos são capazes de tocar o fundo da degradação, podem também superar-se, voltar a escolher o bem e regenerar-se, para além de qualquer condicionalismo psicológico e social que lhes seja imposto. São capazes de olhar para si mesmos com honestidade, externar o próprio pesar e encetar caminhos novos rumo à verdadeira liberdade. Não há sistema que anulem, por completo, a abertura ao bem, à verdade e à beleza, nem a capacidade de reagir e a certeza que Deus continua a animar no mais fundo dos nossos corações (FRANCISCO, 2015, p. 120).

Se mudamos nosso estilo de vida para um modo mais despojado e voltado para o bem comum podemos exercer uma pressão junto aos que tem o poder político, econômico e social. Se consumirmos menos mudamos o comportamento das empresas e elas vão perceber e reconsiderar os impactos ambientais na produção. É a responsabilidade social que muda a mentalidade de quem compra ou vende. O Papa Bento XVI (2009, p. 66) frisou que “[c]omprar é sempre um ato moral, para além do econômico. O tema da degradação ambiental põe em questão os comportamentos de cada um de nós”.

IMPORTANTE

“A Carta da Terra convidava-nos, a todos, a começar de novo deixando para trás uma etapa de autodestruição, mas ainda não desenvolvemos uma consciência universal que o torne possível. Por isso, atrevo-me a propor de novo aquele considerável desafio: ‘Como nunca antes na história, o destino comum obriga-nos a procurar um novo início [...]. Que o nosso seja um tempo que se recorde pelo despertar duma nova reverência face à vida, pela firme resolução de alcançar a sustentabilidade, pela intensificação da luta em prol da justiça e da paz e pela jubilosa celebração da vida’” (FRANCISCO, 2015, p. 121)

A educação e a espiritualidade colaboram para que a pessoa saia de si mesma em direção ao outro, de modo que reconheça as criaturas e a totalidade da vida. Sem perceber os valores não tem como ter limites, ver o sofrimento e a degradação. Sair de si mesmo possibilita melhor o cuidado, suscitando uma nova consciência que se transformam em novos hábitos. Não basta a acumulação de coisas, mas sim romper com a escravidão do mercado e ter mais sensibilidade para com a vida, com espírito generoso e voltado para o bem comum da casa comum. Este é um desafio espiritual e educativo.

A educação ambiental, mais do que ancorada na informação científica, traz um novo modo, que é a lucidez crítica ante os riscos ambientais, os mitos do mercado moderno, o individualismo, concorrência sem regras, a interioridade, a solidariedade, o natural e o espiritual com Deus.

A educação ambiental deveria predispor-nos para dar este salto para o Mistério, do qual uma ética ecológica recebe o seu sentido mais profundo. Além disso, há educadores capazes de reordenar os itinerários pedagógicos de uma ética ecológica, de modo que ajudem efetivamente a crescer na solidariedade, na responsabilidade e no cuidado assente na compaixão. (FRANCISCO,2015, p. 122)

Educação e espiritualidade tem que levar a uma cidadania ecológica, não apenas de informação e de estudos, mas de formação de hábitos concretos, com motivações adequadas para criar leis e cumprimentos adequados. À vista disso, “[a] doação de si mesmo num compromisso ecológico só é possível a partir do cultivo de virtudes sólidas” (FRANCISCO, 2015, p. 123). Se educamos para diminuir os gastos com energia de gás, água e luz, no dia a dia caseiro, cuidamos do ambiente todo. A criação toda está nas pequenas ações diárias de cuidado: diminuir o uso de plástico, papel, água, excesso de comida, veículos e outras ações como o uso de transporte público, plantio de árvores, apagar as luzes que estão acesas sem necessidade. Não desperdiçar é um ato de amor.

A educação e a espiritualidade devem levar a ações e esforços capazes de mudar o mundo. O bem deve ser difundido. A nossa passagem por esta terra tem que deixar a nossa marca de contribuição para a melhoria da terra. Devem usar todos os modos formativos: família, escola, meios de comunicação, catequese, círculos de estudos bíblicos e tantos outros modos. Em tudo conscientizar e criar hábitos do uso correto das coisas, o conhecimento dos ecossistemas, limpeza e harmonia. Uma ação familiar age sobre as associações de bairro. As Igrejas eduquem para a austeridade responsável, para a visão contemplativa do mundo, ter nas suas pautas a questão ambiental e a fragilidade dos menos favorecidos.

IMPORTANTE

Nesse cenário, então “[...] não se deve descurar nunca a relação que existe entre uma educação estética apropriada e a preservação de um ambiente sadio. Prestar atenção à beleza e amá-la ajuda-nos a sair do pragmatismo utilitarista. Quando não se aprende a parar a fim de admirar e apreciar o que é belo, não surpreende que tudo se transforme em objeto de uso e abuso sem escrúpulos. Ao mesmo tempo, se se quer conseguir mudanças profundas, é preciso ter presente que os modelos de pensamento influem realmente nos comportamentos. A educação será ineficaz e os seus esforços estéreis, se não se preocupar também por difundir um novo modelo relativo ao ser humano, à vida, à sociedade e à relação com a natureza. Caso contrário, continuará a perdurar o modelo consumista, transmitido pelos meios de comunicação social e através dos mecanismos eficazes do mercado” (FRANCISCO, 2015, p. 125).

Educação ecológica e espiritualidade como conversão ecológica podem renovar a humanidade. Convicções do que acreditamos e ensinamos geram consequências e mudanças no modo de pensar e agir, alimentam paixões pelo cuidado da nossa casa comum. Doutrina, pedagogia devem encontrar-se para motivar e levar a ações pessoais e comunitárias.

Temos que reconhecer que nós, cristãos, nem sempre recolhemos e fizemos frutificar as riquezas dadas por Deus à Igreja, nas quais a espiritualidade não está desligada do próprio corpo nem da natureza ou das realidades deste mundo, mas vive com elas e nelas, em comunhão com tudo o que nos rodeia. (FRANCISCO, 2015, p. 125-126)

IMPORTANTE

“Se ‘os desertos exteriores se multiplicam no mundo, porque os desertos interiores se tornaram tão amplos’, a crise ecológica é um apelo a uma profunda conversão interior. Entretanto temos de reconhecer também que alguns cristãos, até comprometidos e piedosos, com o pretexto do realismo pragmático frequentemente se burlam das preocupações pelo meio ambiente. Outros são passivos, não se decidem a mudar os seus hábitos e tornam-se incoerentes. Falta-lhes, pois, uma conversão ecológica, que comporta deixar emergir, nas relações com o mundo que os rodeia, todas as consequências do encontro com Jesus”. (FRANCISCO, 2015, p. 126)

Normalmente, as religiões desejam que cada um se torne melhor, e isso é correto, mas não basta que cada um seja melhor sozinho. Partilhar bens pessoais implica uma consciência comunitária. Conversão pessoal é também conversão comunitária. Assim, tal conversão se dá por intermédio de uma mentalidade generosa e terna, gratidão e gratuidade, reconhecimento do dom recebido que deve ser dom partilhado, renúncias para ter generosidade, e a prática humilde que até se coloca no anonimato: “Mas quando deres esmola, não saiba a mão esquerda o que faz a direita. Assim a tua esmola se fará no oculto e o Pai, que vê no oculto, te dará o prêmio” (Mt 6,3-4). 

Implica ainda a consciência amorosa de não estar separado das outras criaturas, mas de formar com os outros seres do universo uma estupenda comunhão universal. O crente contempla o mundo, não como alguém que está fora dele, mas dentro, reconhecendo os laços com que o Pai nos uniu a todos os seres. (FRANCISCO, 2015, p. 127)

A conversão ecológica é a certeza de que cada criatura é o reflexo do Criador e tem uma verdade própria que deve ser respeitada, porque melhora a qualidade de vida. Não podemos deixar de acentuar a sobriedade, que é a capacidade de se alegrar com a medida d necessário e se alegrar com o pouco.

É um regresso à simplicidade que nos permite parar para saborear as pequenas coisas, agradecer as possibilidades que a vida oferece sem nos apegarmos ao que temos nem nos entristecermos por aquilo que não possuímos. Isso exige evitar a dinâmica do domínio e da mera acumulação de prazeres. (FRANCISCO, 2015, p. 128)

A sobriedade nos liberta. Ela não diminui a intensidade de viver bem, mas leva a viver melhor com o que se pode ter estabelecendo uma relação mais próxima de todas as coisas, e mostra muito mais as possibilidades que a vida pode oferecer na relação com as coisas e com todos os seres. A sobriedade de todos levaria a diminuição dos que nada têm.

Junto com a sobriedade vem a humildade, que não instaura o domínio sem limite, mas não atrela a vida a simplesmente possuir. A sobriedade e a humildade nos dão a paz para reconstruir a fragmentação da vida, viver com mais calma, menos ruído, menos pressa, menos ansiedade, sem atropelar a vida. A paz facilita a experiência da ecologia integral que em prol da recuperação da harmonia com toda a criação divina, de mesmo modo que influencia na reflexão acerca de nossos ideais, nosso estilo de vida e na contemplação do Criador (FRANCISCO, 2013, [n. p.]). Logo, a educação e a espiritualidade devem nos levar a fraternidade universal, isto é, viver juntos e em comunhão.

IMPORTANTE

“É necessário voltar a sentir que precisamos uns dos outros, que temos uma responsabilidade para com os outros e o mundo, que vale a pena ser bons e honestos. Vivemos já muito tempo na degradação moral, baldando-nos à ética, à bondade, à fé, à honestidade; chegou o momento de reconhecer que essa alegre superficialidade de pouco nos serviu. Uma tal destruição de todo o fundamento da vida social acaba por colocar-nos uns contra os outros na defesa dos próprios interesses, provoca o despertar de novas formas de violência e crueldade e impede o desenvolvimento duma verdadeira cultura do cuidado do meio ambiente”. (FRANCISCO, 2015, p. 131)

A ecologia integral é feita de caminho de amor, de palavras e gestos gentis, sorrisos, amizade que possam substituir a violência e o egoísmo que explora. Não podemos maltratar nenhuma forma de vida. É um compromisso também com o bem comum realizando gestos de cuidado mútuo na política, na vida civil, no amor a sociedade, a cidade, instaurar mesmo a civilização do amor que priorize a cultura do cuidado.

Quando pedagogia e ecologia se unem pode brotar uma consistente espiritualidade. O modo franciscano de educar é um casamento perfeito entre intelecto e afeto, a união harmoniosa de cabeça e coração e isso transforma o mundo, e que potencial de transformação existe num tema como este que procura mostrar uma visão originária de mundo. A cosmovisão franciscana tem força educadora, é naturalmente uma escola pedagógica, uma escola de discipulado. Abraça a vida na minoridade como liberdade, igualdade e fraternidade.

Educar é pulsar uma nova visão cósmica que abrace a itinerância pela terra dos humanos de olho nos astros e estrelas que sempre compuseram o imaginário do ser humano e conduziram pastores de ovelhas e navegadores. É uma forma de contemplação na ação. Educar é ser para o outro e para todos os seres um sentido primário da fraternidade. Ninguém pode ficar fora do processo, se faltar uma criatura falta o todo. Nesta visão o mundo, as pessoas, os seres são pensados como forma de totalidade.

Francisco de Assis convive, come, dorme e fala aos ricos e mendigos, reúne o clérigo, o camponês, o artesão e o cavaleiro; da pobreza à nobreza uma história de reconstrução da casa da existência com as imagens reais da história da humanidade. A herança e a intuição franciscana influenciam definitivamente uma pedagogia clara, forte e provocadora.

Estamos em uma mudança de época, o que caracteriza uma época não são apenas os conflitos, mas seu paradigma de fé e seu modo de ver o mundo. A herança medieval franciscana está ancorada em crer em uma inspiração, fazer valer a vontade do Senhor, mudar de mentalidade e mudar de lugar num processo de conversão para um novo projeto civilizatório. O modo de educar na ecoespiritualidade é um projeto feito como um varal onde penduramos os valores em que acreditamos. Neste contexto, temos que relembrar os valores da casa comum em que habitamos, não podemos ter vergonha da fé que professamos e dos valores que carregamos e os valores que ensinamos, por isso, temos que apresentar isso ao mundo!

É preciso educar para um novo modo de ser, para uma nova aliança entre a humanidade e o ambiente, acompanhar e influenciar a transformação da infância, dos adolescentes dos jovens e dos adultos. Favorecer formas de educar que tragam realização humana e cuidado com a criação para gestar um novo tipo de ser humano e um mundo mais viável. Educar para a sensibilidade e compaixão. Educar para a solidariedade e para o sentido bom da vida. Temos que fazer a globalização da solidariedade. Francisco de Assis construiu um caminho onde não havia caminhos. O desafio da educação ecológica franciscana hoje é o mesmo.

É preciso levar tais verdades nas Semanas Pedagógicas de nossas instituições educativas como um grande fôlego e uma grande retomada. Conduzir para frente com linhas bem claras de uma pedagogia própria. Conduzir para fora o que está latente dentro de nós e despertar para o que já somos! Não educar como apenas informar, isso pode passar somente um acúmulo de saber, porém despertar para ser pessoa integrada no todo da vida e na compreensão da vida. A vida é mais do que a disciplina.

Toda pessoa é convocada a construir seu mundo e o mundo que está ao seu redor, sendo assim, no nosso caso, somos umbilicalmente ligados a um pensamento e prática de Francisco de Assis, que viveu a liberdade do Evangelho com tudo e com todos. Tão livre que abraçou o leproso e o Crucificado e foi abraçado no encontro com o leproso pelo Crucificado; os pobres banharam Francisco de misericórdia.

Educar franciscanamente é, acima de tudo, desejar fazer com todas as fibras do coração o que fez o Arauto do Amor que tem que ser amado. Para Francisco tudo é irradiação do Amor de Deus! Francisco foi visitado por uma inspiração, visitado pelo Senhor, despertou. Ele se transformou em um admirado, o plenamente alegre e transformado. Diante de tal nobreza, como ter um coração pesado? Temos que ser educadores no modo franciscano.

O educador franciscano, encontrado por tamanha inspiração, ultrapassa o seu mundo pessoal e, como Francisco, deve fazer este movimento: antes de ser visitado, pede e, depois de visitado, agradece, reconhece, compromete-se. O educador franciscano tem o espírito de Marta que era só servir. O amor ao Senhor fez dela um serviço. O Senhor que entrou em sua casa a fez servir o Amor que a visitava e está sempre, aos pés do Senhor, como um aprendiz! O educador franciscano tem olhar de águia e alma sertaneja, é concentrado e expansivo, inspira-se nas criaturas e nos pobres para assumir a sua finitude, não tem medo de perdas e carências. O bom educador vai sempre ao essencial! “Ser o que somos para ser o que devemos ser” (Tristão de Athayde).

Na vertente franciscana, espiritualidade e afetividade não se separam. Nós amamos, porque fomos amados e, por isso, nós temos algo de próprio. Ir para o aprendizado é como ir aos domingos procurar a fome de um Deus que nos alimenta. Ser um Riobaldo – em Grande Sertão: Veredas, de Guimarães Rosa –, um homem que precisa fazer a travessia e confrontar-se com tudo.

Temos que ser como Francisco de Assis, que irradia um modo de ser e fazer um caminhar que reescreve o Gênesis. Aprender e ensinar a seguinte verdade: tonar mais nítido o que nos atraiu, a liberdade que nos foi dada no natural de uma conquista. A herança franciscana não é o conjunto de técnicas metodológicas, mas sim as razões que nos dão um horizonte para uma existência. Buscar essas razões como um cão que, na feira livre, procura o seu dono cheirando as canelas da multidão. Procurar o dono é o afeto forte que se sente por ele.

Para onde vão nossas ideias? Em qual direção? A cabeça pensa onde os pés pisam. Educar franciscanamente é ensinar conceitos, hábitos e valores que sustentam cada ser humano. É ensinar a amabilidade, a sinceridade, a confiança mútua, o autocontrole, a fraternidade universal, a resistência, a lucidez, a audácia, a consciência, a vontade, a inteligência e a estratégia. Todos esses são atributos mais importante do que o deus dinheiro que invade escolas transformadas em mercado. Temos que dar graças por haver uma outra cultura possível. Valores são dinâmicos e nossas escolas têm que ser o lugar do renascimento axiológico exigido pelos tempos atuais. A sociedade líquida (BAUMAN, 2007, p. 76) não pode dissolver esses valores. Mas temos que fazer da educação um processo de degustação, como em um banquete, ao invés de ser com a aceleração dos fast-food, para, assim, não entrar na rápida cultura do descarte. O consumismo vende necessidades que não temos. A hiperinformação e a hipercomunicação não injetam nenhuma luz na obscuridade.

O nosso lugar é na nossa Casa Comum e no cosmo e, por isso, temos que ter muito cuidado com ela. Não devemos nos esquecer que o nosso vínculo é com todo ser criado. Na turbulência global em que vivemos, a questão ambiental tem quer ser prioridade nas escolas. Salvar a terra não é privilegiar o capital. Se estragamos vamos ter que consertar. É ser corpo e corporeidade e não apenas cabeça isolada. A escola não pode ignorar o corpo. Temos que cuidar bem da afetividade e do manejo de nossas sensações, de modo que façamos cada vez mais humana a humanidade. Temos que criar uma pedagogia do encontro, um diálogo como condição para fraternizar um mundo multireligioso e multicultural.

Não podemos ter valores genéricos. Temos vida interior e transcendência, responsabilidade e compromisso, assim, temos que ser uma presença da paz, da reconciliação e da misericórdia. Educar franciscanamente é a construção de uma civilização baseada no amor. Temos que educar para a paz, pois nosso estilo é pacífico e não violento, que evita toda e qualquer contenda.

Atacamos demais a violência feita em outras culturas, todavia não podemos esquecer que as maiores atrocidades da história foram feitas por países cristãos, como a inquisição que matou muito mais do que qualquer fundamentalismo islâmico. Também precisamos viver a solidariedade em oposição a competitividade, os dados evidenciam que três milhões de pessoas vivem em condições sub-humanas.

A vida não pode ser uma loteria biológica. Temos que ser da contemplação, da ternura, do maravilhamento e da tolerância, de maneira a resgatar a vida simples e a cotidianidade. Mesmo em meio aos valores questionados, temos que manter a nossa postura alteritária: colocar-se sempre no lugar do outro e criar todas as condições para que a humanidade possa viver com dignidade e felicidade. No século XIII, a proposta franciscana antecipou o futuro e enfrentou todos os desafios sem psicose defensiva. Já no século XXI, a dimensão profética mostra que educar franciscanamente é construir uma nova humanidade, um novo céu e uma nova terra! A felicidade, a realização está dentro de nós e na verdade de todas as criaturas.

Texto originalmente publicado pela USF- FREI VITORIO MAZZUCO FILHO




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ECOTEOLOGIA- PARTE 10-UNIDADE 3: ESPIRITUALIDADE RESPONSÁVEL EM FACE À DEGRADAÇÃO DA NATUREZA- 3. O OLHAR DE JESUS E A HARMONIA COM OS ELEMENTOS DA NATUREZA: A ÁGUA, O FOGO, O VENTO E A TERRA 20 Feb 2:02 PM (2 months ago)

 

O olhar de Jesus é a sua presença através da Encarnação nesta Terra. Ele abraça a vida no chão onde nasce a vida. O Evangelho de João afirma o amor de Deus ao mundo e a capacidade de entregar seu Filho para trazer vida em abundância (Jo 3,16). Jesus vem transformar o que é terreno. Está inserido em Belém, Nazaré, na Judéia, na Galileia. É dado à luz num espaço de rocha, gruta, animais, feno, palha e animais. É no meio da natureza que Ele vem à luz para revelar a presença de Deus na natureza, no mundo e na história. Ele é Deus encarnado que vem gerar uma vida nova em meio a todos os seres viventes.

Dos caminhos da Galileia chega ao centro que é Jerusalém para mostrar que o mundo deve se tornar o Reino Adorável do Pai Celeste: tudo deve ser transformado em vida nova para tudo e todos. Ele olha a vida e diz que ela é semente de mostarda, vinha, grão de trigo, aves do céu e lírios do campo. Jesus olhou e amou a terra. Ela é o chão maternal de onde depende a vida Ele vem viver na terra e vive do sustento da terra: pão, espigas e uva.

As parábolas de Jesus mostram o milagre da terra produzindo cuidado; cultivar é produzir vida. Repartir sacia a fome de muitos. Ele multiplica o pão para que o povo que o acompanha não enfraqueça com a fome. Ele mesmo se dá como alimento: “Eu sou o pão vivo descido do céu. Se alguém comer deste pão, viverá para sempre. E o pão que darei é minha carne para a vida do mundo" (Jo 6, 51). Toda fome é saciada com o que a terra produz, e esta produção é o modo como Deus se dá como própria carne. Ele encarnou-se e assumiu a terra e o jeito dos que habitam a terra como expressão da maior graça: a doação do Pai em suas obras.

Nas águas do Jordão ele é batizado, no mar da Galileia ou lago de Genesaré Ele pesca com os discípulos, transforma a água em vinho e vive uma vida simples como a água. Matou a sua sede à beira do poço de Jacó onde pediu à Samaritana desse de beber. A água sustenta a vida. Ele enfrentou a chuva tempestuosa. Assim como a água, onde Jesus está há vida em profusão: “Se alguém tiver sede, venha a mim e beba. Quem crê em mim, como diz a Escritura: do seu interior correrão rios de água viva” (Jo 7,37-38).

 IMPORTANTE

“Aqui, nas parais do Mar Jardim, surgindo quase que do nada, na verdade: vindo de outra margem de todos os mares deste mundo, sim, do jardim de Deus, apareceu, um dia, Jesus de Nazaré. Ali nas cercanias daquele lago, ele teria convocado os seus discípulos, falado aos homens e mulheres, feito milagres e encantado multidões. Essa parece ter sido a mais dileta paisagem de toda a sua terra natal. Talvez, por um motivo muito simples: existem coisas, muitas até, neste mundo que nos arrebatam para Deus. Uma rocha, uma árvore, o céu, as estrelas, o fogo, o ar, a água, um lago. Nada disso é sagrado, mas, junto a essas coisas, sentimo-nos, não raro, reportados à firmeza (rocha), à proteção (árvore), ao infinito (céu), à luz (estrelas), ao calor (fogo), à suavidade (ar), ao alívio e à força (água), ao sustentáculo (lago) de nossa própria vida e de todas as coisas: Deus. Assim também para Jesus de Nazaré. O mar da Galileia era-lhe, com certeza, um sacramento daquele que Ele carinhosamente, chamava de seu Pai. E talvez seja por isso que Ele tenha permanecido durante toda a sua vida à beira de um lago: para que nós, ouvindo-o e vendo O Mar Jardim, compreendêssemos que a mais alta vocação deste mundo é ser um jardim e não um deserto e para que, avistando à nossa frente o amor humanitário de Deus nos sentíssemos, para sempre, sob o Olhar do Altíssimo. E contemplando, quem sabe, na superfície de todas as águas, como num espelho, o céu, percebêssemos, finalmente, que temos uma outra sede e que existe uma outra água: humilde, preciosa e casta”. (NERY, 1999, p. 29)

 A presença de Jesus e seu olhar sobre esta terra está na força do Espírito que o conduz. A metáfora do fogo e vento traduzem a ação de Deus. Os que caminham com Ele sentem o coração arder (Lc 24,32). Movido pela força da “ruah” de seu Pai, Ele sopra sobre os seus a vida e o dinamismo de Deus. Jesus nasce de uma Mulher para mostrar que o Sopro de Deus faz morada no ventre da humanidade e está engravida de um grande amor de Deus que está presente em cada criatura.

 O Espirito é sopro divino, vento que nada pode deter, nenhuma porta fechada, nenhum limite; qual brisa leve, espalha e leva adiante a chama ardente da pregação do Reino. Diz o apóstolo: “O vento sopra onde quer” (Jo 3,8). O salmo 104 proclama: “Envia o teu sopro e eles serão criados, e assim renovarás a face da terra. O vento e a chama estão em Pentecostes como ânimo, coragem e missão”. Já no Novo Testamento, o fogo tem a força messiânica nos lábios de João Batista: “É Ele que vos batizará no Espírito Santo e no fogo” (Mt 3,11).

Texto originalmente publicado pela USF- FREI VITORIO MAZZUCO FILHO




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ECOTEOLOGIA- PARTE 9-UNIDADE 3: ESPIRITUALIDADE RESPONSÁVEL EM FACE À DEGRADAÇÃO DA NATUREZA- 2. A RAIZ HUMANA DA CRISE ECOLÓGICA 20 Feb 1:59 PM (2 months ago)


 O ser humano nem sempre concebe a vida de um modo harmonioso; a sua ação no mundo pode arruinar a natureza. Ele tem em suas mãos o poder da tecnologia: a era industrial trouxe a máquina a vapor, eletricidade, telégrafo, ferrovias, automóveis, avião, as indústrias químicas, a energia nuclear, a evolução dos aparelhos que ajudam a medicina moderna, a informatização, a cultura digital, a inteligência artificial, a robótica, a nanotecnologia e a biotecnologia. Tudo isso tem que ser enaltecido porque mostra a atuação e a capacidade da inteligência humana de tornar a nossa vida mais funcional e mais prática. A questão é perguntar: tudo isso será usado somente para o bem? Não podemos esquecer que regimes autoritários fizeram uso da bomba atômica, do mercado das armas para impor seu poder ceifando vidas.

Os progressos vindos do mundo midiático, da medicina e das engenharias deram a nossa vida um outro ritmo e muitas facilidades nas conquistas de soluções. 

A tecnociência, bem orientada, pode produzir coisas realmente valiosas para melhorar a qualidade de vida do ser humano, desde os objetos de uso doméstico até aos grandes meios de transporte, pontes, edifícios, espaços públicos. É capaz também de produzir coisas belas e fazer o ser humano, imerso no mundo material, dar o salto para o âmbito da beleza. Poder-se-á negar a beleza de um avião ou de alguns arranha-céus? Há obras pictóricas e musicais de valor, obtidas com o recurso aos novos instrumentos técnicos. Assim, no desejo de beleza do artífice e em quem contempla esta beleza dá-se o salto para uma certa plenitude propriamente humana. (FRANCISCO,2015, p. 66)

O poder que está nas mãos do ser humano não está no uso da tecnologia e de sua força para a economia. A humanidade tem que ser educada para o uso adequado destas forças. Tem que transformar e não fazer uma apropriação de intervenção sobre a vida, a natureza, manipulando as forças naturais em função do lucro sem pensar nas consequências.

IMPORTANTE

“O antropocentrismo moderno acabou, paradoxalmente, por colocar a razão técnica acima da realidade, porque este ser humano já não sente a natureza como norma válida nem como um refúgio vivente. Sem se pôr qualquer hipótese, vê-a, objetivamente, como espaço e matéria onde realizar uma obra em que se imerge completamente, sem se importar com o que possa suceder a ela. Assim debilita-se o valor intrínseco do mundo. Mas, se o ser humano não redescobre o seu verdadeiro lugar, compreende-se mal a si mesmo e acaba por contradizer a sua própria realidade. Não só a terra foi dada por Deus ao homem, que a deve usar respeitando a intenção originária de bem, segundo a qual lhe foi entregue; mas o homem é doado a si mesmo por Deus, devendo por isso respeitar a estrutura natural e moral de que foi dotado”. (FRANCISCO, 2015, p. 73)

Texto originalmente publicado pela USF- FREI VITORIO MAZZUCO FILHO




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ECOTEOLOGIA- PARTE 8-UNIDADE 3: 1. ESPIRITUALIDADE RESPONSÁVEL EM FACE À DEGRADAÇÃO DA NATUREZA 20 Feb 1:56 PM (2 months ago)

 


As experiências religiosas, em sua maioria, também colocam como elemento de sua fé em um Deus Criador. Acreditar em Deus providente e criador instaura uma espiritualidade que protege a vida e evita a sua destruição. Cuidar da natureza com a sua força e com os seres mais frágeis faz parte dos conteúdos da fé. Com isso, ter fé é ter, diante dos olhos, todos os tipos de cuidado para com a vida. Para o mundo cristão, o livro do Gênesis apresenta a criação de um modo muito evidente como obra divina: a criação do ser humano e a criação de todos os seres é uma obra boa e do bem (Gn 1,31).

 Tudo que existe é feito com amor e por amor. O que nasce do amor vem com a marca da semelhança de Deus. Quem cuida da pessoa humana e cuida de todos os seres está do lado da dignidade da vida. A criação é uma realidade histórica de relação com Deus, com a convivência entre seres humanos e com toda a terra. O pecado é a falta de cuidado extremos com estas três realidades. Não podemos criar conflitos, mas relações harmoniosas que visam proteger a vida. Segundo afirma a Laudato Sì, “[p]or isso, é significativo que a harmonia vivida por São Francisco de Assis com todas as criaturas tenha sido interpretada como a sanação de uma ruptura” (FRANCISCO, 2015, p. 45).

 IMPORTANTE

“É importante ler os textos bíblicos no seu contexto, com uma justa hermenêutica, e lembrar que nos convidam a ‘cultivar e guardar’ o jardim do mundo (cf. Gn 2, 15). Enquanto ‘cultivar’ quer dizer lavrar ou trabalhar um terreno, ‘guardar’ significa proteger, cuidar, preservar, velar. Isto implica uma relação de reciprocidade responsável entre o ser humano e a natureza. Cada comunidade pode tomar da bondade da terra aquilo de que necessita para a sua sobrevivência, mas tem também o dever de a proteger e garantir a continuidade da sua fertilidade para as gerações futuras”. (FRANCISCO, 2015, p. 46)

Se podemos assumir que espiritualidade é a vida segundo o Espírito, podemos também afirmar que o ser humano deve respeitar as leis da natureza, os equilíbrios dos ecossistemas, a ordem natural de tudo, porque tudo tem um valor próprio. O Catecismo da Igreja Católica, no parágrafo 339, frisa que

 [c]ada criatura possui bondade e perfeição próprias. As diferentes criaturas, queridas em seu próprio ser, refletem, cada uma a seu modo, um raio da sabedoria e da bondade infinitas de Deus. Por isso o homem deve respeitar a bondade própria de cada criatura, a fim de evitar o uso desordenado das coisas. (CIC, 2000, p. 9)

 A passagem bíblica que narra a história de Caim e Abel (Gn 4, 9-12ss) mostra que manter um relacionamento bom e sem conflito é uma defesa também de tudo o que existe. Se existe ódio tudo corre perigo. Se um relacionamento não é bom, a harmonia deixa de habitar a terra. A narrativa do dilúvio (Gn 6,13) alude que, se a humanidade é incapaz de viver em paz, a terra se enche de violência, então é preciso salvar as espécies para que a vida possa subsistir. Cuidar das espécies é sempre um novo início. Noé é um homem bom que enche a vida de esperança e reabilita todos os seres. Cada espécie pertence a todos.

 IMPORTANTE

“Os Salmos convidam, frequentemente, o ser humano a louvar a Deus criador: ‘Estendeu a terra sobre as águas, porque o seu amor é eterno’ (Sl 136, 6). E convidam também as outras criaturas a louvá-Lo: ‘Louvai-O, sol e lua; louvai-O, estrelas luminosas! Louvai-O, alturas dos céus e águas que estais acima dos céus! Louvem todos o nome do Senhor, porque Ele deu uma ordem e tudo foi criado’ (Sl 148, 3-5). Existimos não só pelo poder de Deus, mas também na sua presença e companhia. Por isso O adoramos. Os escritos dos profetas convidam a recuperar forças, nos momentos difíceis, contemplando a Deus poderoso que criou o universo. O poder infinito de Deus não nos leva a escapar da sua ternura paterna, porque n’Ele se conjugam o carinho e a força. Na verdade, toda a sã espiritualidade implica simultaneamente acolher o amor divino e adorar, com confiança, o Senhor pelo seu poder infinito.

Na Bíblia, o Deus que liberta e salva é o mesmo que criou o universo, e estes dois modos de agir divino estão íntima e inseparavelmente ligados: ‘Ah! Senhor Deus, foste Tu que fizeste o céu e a terra com o teu grande poder e o teu braço estendido! Para Ti, nada é impossível! [...] Tu fizeste sair do Egito o teu povo, Israel, com prodígios e milagres” (Jr 32, 17.21). “O Senhor é um Deus eterno, que criou os confins da terra. Não se cansa nem perde as forças. É insondável a sua sabedoria. Ele dá forças ao cansado e enche de vigor o fraco’ (Is 40, 28b- 29)”. (FRANCISCO, 2015, p. 49-50)

Não existe uma espiritualidade que releve o Deus providente e criador. Ele é o centro da reverência. Sem Deus vamos adorar outros poderes do mundo. O ser humano não é dono e dominador do mundo, mas um servo do Criador de todas as coisas. Dentro das estruturas de poder econômico do mundo, há o apelo de que é melhor aumentar o patrimônio do que o processo civilizatório. Por isso, a espiritualidade vem para criar e refazer o que está sendo desconstruído. A criação é um projeto de amor de Deus. À vista disso,

[a] criação pertence à ordem do amor. O amor de Deus é a razão fundamental de toda criação. “Tu amas tudo o que existe e não detestas nada do que fizeste; pois, se odiasses alguma coisa, não a terias criado” (Sb 11,24). Então cada criatura é objeto de ternura do Pai que lhe atribui um lugar no mundo. Até a vida efêmera do ser mais insignificante é objeto do seu amor e, naqueles poucos segundos de existência, Ele envolve-o com seu carinho. Dizia São Basílio Magno que o criador é também “a bondade sem cálculos” e Dante Aligheri falava do “amor que move o sol e as outras estrelas. Por isso, das obras criadas pode-se subir “à sua amorosa misericórdia”. (FRANCISCO, 2015, p. 51)

Quando tratamos de uma espiritualidade responsável estamos nos referindo na buscar por desenvolver todas as nossas potencialidades, sobretudo a nossa força interior, para cuidar dos limites do mundo exterior. Nenhuma espiritualidade é egoísta, pelo contrário, ela é relação, participação e comunhão. A espiritualidade acontece junto com o que acontece na vida como um todo, ela é responsável em abraçar o mundo e a história para salvar, sanar, cuidar, libertar, transformar e evitar qualquer tipo de destruição. Logo, a espiritualidade responsável é continuadora da ação criadora de Deus. Isso porque o

[...] Espírito de Deus encheu o universo de potencialidades que permitem que do próprio seio das coisas, possa brotar sempre algo de novo: “A natureza nada mais é do que a razão de certa arte – concretamente arte divina – inscrita nas coisas, pela qual as próprias coisas se movem para um fim determinado. Como se o mestre construtor de navios pudesse conceder à madeira a possibilidade de se mover a si mesma para tomar a forma da nave”. (FRANCISCO, 2015, p. 53)

Espiritualidade reforça a identidade e todos temos uma identidade pessoal que entra em diálogo com tudo e todos, sobretudo, com o próprio Deus. A espiritualidade qualifica a vida, traz interiorização e discernimento, capacidade de um pensamento seguro, criatividade e interpretação. A Laudato Sì reforça que “[a] novidade qualitativa, implicada no aparecimento de um ser pessoal dentro do universo material, pressupõe uma ação Espiritualidade reforça a identidade e todos temos uma identidade pessoal que entra em diálogo com tudo e todos, sobretudo, com o próprio Deus. A espiritualidade qualifica a vida, traz interiorização e discernimento, capacidade de um pensamento seguro, criatividade e interpretação. A Laudato Sì reforça que “[a] novidade qualitativa, implicada no aparecimento de um ser pessoal dentro do universo material, pressupõe uma ação direta de Deus, uma chamada peculiar à vida e à reação de um Tu com outro tu” (FRANCISCO, 2015, p. 53-54).

A espiritualidade nos remete a nossa natureza divina, somos feitos imagem e semelhança de Deus que nos colocou em comunhão com a grandiosidade dos detalhes da natureza onde nada é banal, nada é supérfluo. Por conta disso que “[t]odo o universo material é uma linguagem do amor de Deus, do seu carinho sem medida por nós” (FRANCISCO, 2015, p. 55).

IMPORTANTE

O Papa pondera que “Deus escreveu um livro estupendo, ‘cujas letras são representadas pela multidão de criaturas presentes no universo’. E justamente afirmaram os bispos do Canadá que nenhuma criatura fica fora desta manifestação de Deus: ‘Desde os panoramas mais amplos às formas de vida mais frágeis, a natureza é um manancial incessante de encanto e reverência. Trata-se duma contínua revelação do divino’. Os bispos do Japão, por sua vez, disseram algo muito sugestivo: ‘Sentir cada criatura que canta o hino da sua existência é viver jubilosamente no amor de Deus e na esperança’. Esta contemplação da criação permite- nos descobrir qualquer ensinamento que Deus nos quer transmitir através de cada coisa, porque, ‘para o crente, contemplar a criação significa também escutar uma mensagem, ouvir uma voz paradoxal e silenciosa’. Podemos afirmar que, ‘ao lado da revelação propriamente dita, contida nas Sagradas Escrituras, há uma manifestação divina no despontar do sol e no cair da noite’. Prestando atenção a esta manifestação, o ser humano aprende a reconhecer-se a si mesmo na relação com as outras criaturas: ‘Eu expresso-me exprimindo o mundo; exploro a minha sacralidade decifrando a do mundo’”. (FRANCISCO, 2015, p. 55-56)

A espiritualidade responsável sublinha, assim, que a natureza em sua totalidade é o lugar da manifestação e da presença de Deus. Os Bispos do Brasil afirmam que “[e]m cada criatura habita o seu Espírito vivificante, que nos chama a u relacionamento com Ele. A descoberta dessa presença estimula em nós o desenvolvimento das ‘virtudes ecológicas’ (CNBB, 1992, p. 53-54).

E a força virtuosa nos leva a considerar as criaturas como um bem que tem uma paternidade. Se tem um Pai, nós todos formamos uma família de consanguinidade criatural, isso nos leva a viver os valores da comunhão, respeito e amorosidade. Dessa forma, se o solo está doente, todos estamos doentes; se uma espécie é extinta ou sofre com a desenfreada caça predatória, todos estamos mutilados. Não é uma questão de divinizar a terra e os seres que a habitam, mas de protegê-la. Nenhum ser vivo pode ser tratado de modo irresponsável. Também não se iguala o ser humano como uma criatura qualquer.

IMPORTANTE

Papa Francisco nos lembra que “[n]ão pode ser autêntico um sentimento de união íntima com os outros seres da natureza, se ao mesmo tempo não houver no coração ternura, compaixão e preocupação pelos seres humanos. [...]. Não é por acaso que São Francisco, no cântico onde louva a Deus pelas criaturas, acrescenta o seguinte: ‘Louvado sejas, meu Senhor, por aqueles que perdoam por teu amor’. Tudo está interligado. Por isso, exige-se uma preocupação pelo meio ambiente, unida ao amor sincero pelos seres humanos e a um compromisso constante com os problemas da sociedade. Além disso, quando o coração está verdadeiramente aberto a uma comunhão universal, nada e ninguém fica excluído desta fraternidade. Portanto, é verdade também que a indiferença ou a crueldade com as outras criaturas deste mundo sempre acabam de alguma forma por repercutir-se no tratamento que reservamos aos outros seres humanos. O coração é um só, e a própria miséria que leva a maltratar um animal não tarda a manifestar-se na relação com as outras pessoas. Todo o encarniçamento contra qualquer criatura ‘é contrário à dignidade humana’. [...] Tudo está relacionado, e todos nós, seres humanos, caminhamos juntos como irmãos e irmãs numa peregrinação maravilhosa, entrelaçados pelo amor que Deus tem a cada uma das suas criaturas e que nos une também, com terna afeição, ao irmão sol, à irmã lua, ao irmão rio e à mãe terra”. (FRANCISCO, 2015, p. 59-60)

A terra é nossa herança comum que beneficia a todos, sem exceção. Por isso, uma espiritualidade responsável tem que levar em conta os desfavorecidos, não se pode excluir ninguém dos benefícios da terra. Em virtude disso, os Bispos do Paraguai defendem que

 [c]ada camponês tem direito natural de possuir um lote razoável de terra, onde possa estabelecer o seu lar, trabalhar para a subsistência da sua família e gozar de segurança existencial. Este direito deve ser de tal forma garantido, que o seu exercício não seja ilusório, mas real. Isto significa que, além do título de propriedade, o camponês deve contar com meios de formação técnica, empréstimos, seguros e acesso ao mercado. (CONFERÊNCIA EPISCOPAL DO PARAGUAI, 1992, [n. p.])

O meio ambiente é o nosso bem coletivo, o nosso patrimônio, a nossa responsabilidade. Quem tem uma parte deste benefício tem que administrar em função do bem de todos.

Texto originalmente publicado pela USF- FREI VITORIO MAZZUCO FILHO




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ECOTEOLOGIA- PARTE 7-UNIDADE 3: ESPIRITUALIDADE RESPONSÁVEL EM FACE À DEGRADAÇÃO DA NATUREZA 29 Jan 10:00 AM (2 months ago)

 

INTRODUÇÃO

Espiritualidade é olhar a vida com os olhos do espírito, é sensibilidade e percepção, sentir e amar, por isso não se pode tratar a questão ecológica sem o filtro da intuição, inspiração e revelação espiritual. Os ritos de todas as religiões estão repletos de sinais, símbolos e elementos da natureza. A espiritualidade não se contrapõe a materialidade, mas busca sempre a verdade e o sentido de todas as coisas fazendo com que elas tenham comunhão e fraternidade. É perceber, assim, que Deus é maravilhoso em suas obras e que a beleza detalhada da criação mostra para nós a existência do Criador. A linguagem espiritual não pode ser só acadêmica e técnica, mas uma linguagem que comunique a graça da vida e o estar imerso nela.

Espiritualidade é unir busca espiritual com a busca do sentido da existência nesta Casa Comum: o mundo. Nele há uma oferta intensa da beleza do natural e da intensidade do material como caminho de realização, mas, se não equilibramos tal oferta, a alma sente o vazio de não estar saciada. A espiritualidade hoje está em referência a mentalidade e práticas que dão sentido e ultrapassam o mundo das coisas e dos fatos, e inclui temas como o ser, a natureza, o vazio existencial que precisa ser preenchido, a evolução, as redes sociais e as grandes questões atuais.

Trazendo uma releitura da fala do teólogo Hans Urs Von Balthasar, a Espiritualidade: “é uma postura fundamental, prática e existencial de compreensão de existir, ou de forma mais geral, com suas decisões mais profundas”. Assim, para entender o que seria decisões mais profundas vamos à raiz da palavra Espiritualidade. Ver onde ela comporta uma experiência corporal, física e existencial e vinculada aos elementos da natureza.

Espiritualidade vem do Grego “Pneuma”, do Hebraico “Ruach”, do Latim “Spiritus”. Pneuma é sopro, vento, ar que preenche, alento, presença, suporte. O que anima, o que dá fôlego, é o “pneumatikós”. Do que eu estou cheio? É o que sustenta uma vida, uma busca, um projeto, uma instituição, uma fundamentação.

Ruach é vento, ar, hálito vital, sopro, corrente de ar, sopro bafejante de todo organismo vivente. Uma presença sentida de maneira dinâmica como uma força que coloca em movimento, tanto interior como exteriormente, como algo que cria a realidade e chama a existência. É o hálito de vida que atravessa o ser humano e que ele expira finalmente ao morrer (o último suspiro). Este sopro e alento é a energia vital de tudo o que existe, como sopro de Javé, que pairava sobre as águas primordiais gerando a vida. Ruach significa força, vida, persistência, espírito, fôlego longo.

Spiritus é a palavra latina que evoca novamente o aspecto físico e corpóreo: sopro ritmado da respiração. Significa a alma, a vontade, o entusiasmo e animação. É a parte inspiracional do ser humano. Inspirar, expirar e transpirar. É sentir, escutar o ritmo do próprio sopro. Sentir o que está dentro. É sentir a entidade sobrenatural, a força de Deus que nos anima.

O spiritus movimenta, alegra, esquenta e anima o corpo e todo o ser da pessoa. Produz fogo, calor, luz e energia. É uma substância que tem tanta energia e força no seu interior que pode até explodir. Espírito tem a ver com energia e fogo interior. A Espiritualidade tem a ver com uma respiração, um alento que vem de dentro, um fogo e um calor, uma força que brota, salta para fora, e sustenta o íntimo da pessoa e revela uma força espiritual da pessoa espiritual.

A Espiritualidade não tem nada a ver com visões românticas ou idílicas que associam o espiritual com a ausência total de conflito, de tensão e de luta, como geralmente se pensa. 

Quando as pessoas querem ter Espiritualidade, elas buscam a raiz da existência, da qual raiz brotam para o alto. São pessoas que querem ser suportadas, carregadas, alimentadas por uma raiz que está plantada no fundo do chão. Vive perto da raiz, se alimenta dela, que toma as coisas pela raiz, isso é, vai aos fundamentos. A Espiritualidade não vem apenas do alto, mas de estar firme e profundamente no chão, enraizado na terra e na realidade. É radicalidade.

Quando dizemos que homens e mulheres espirituais costumam ser radicais, queremos mencionar, em primeiro lugar, essa proximidade da terra e do húmus, esse enraizamento profundo que alimenta uma vida, que sustenta o tronco e a copa da árvore, em todo e qualquer tempo, dando-lhe firmeza e consistência. Espiritualidade é uma oposição ao superficial e ao descartável, o que não é profundo. As pessoas que se mantem próximas do chão, sentem a terra e vão a raiz, conseguem manter a simplicidade e a humildade. São pessoas que sabem do húmus, e sabem que toda vida vem da interioridade.

São Francisco era uma pessoa que viveu e sentiu-se intimamente ligado à mãe terra. Antes de sua morte, quis ser depositado nu sobre a terra nua. Esta é a razão da humildade, todos vêm da mesma mãe, são alimentados por ela e a ela retornam. Uma pessoa espiritual vive da força que vem das raízes. Pessoas espirituais procuram respirar o mesmo sopro.

Respirar corretamente, cada vez de forma integral, atenta e concentrada, a partir do âmago, da profundidade, de maneira natural e leve, humilde e sem espalhafato. Quem respira bem consegue caminhar mais longe, ir mais adiante, não desanima, não esmorece. Espiritualidade significa não perder o fogo interior em qualquer circunstância da vida.

A Espiritualidade precisa ser cultivada. Há uma cultura espiritual (kelt, cult). Cultivar significa trabalhar a terra, trabalhar o natural e transformar. Tratar com cuidados as sementes, cuidar da plantação, fazer crescer, melhorar, aperfeiçoar, regar, levar algo a condição de melhor. Ajudar a frutificar. Espiritualidade é, também, cultivar e cuidar da respiração interior do seu ser com o mesmo cuidado que tem o camponês quando trabalha a terra. A pessoa espiritual é alguém que exercitou tão bem a arte e o alento do espírito, que mesmo nas situações mais difíceis da vida e do caminho, ela não perde o fôlego, não perde a consistência. Dessa forma, a Espiritualidade também exige que cada um proteja a sua chama interior, o seu calor, e não a deixe apagar por qualquer motivo ou situação banal.

A Espiritualidade está aberta a qualquer pessoa em qualquer tempo da história. As diferentes espiritualidades, quando autênticas, são traduções espirituais profundas da experiência do Sopro. A busca da Espiritualidade vem de baixo, das raízes do humano, ela salta das profundezas da alma humana, não vem de cima, do além ou como se fora apenas um enfeite que se coloca de fora e do exterior da vida das pessoas.

Quando nós respiramos profundamente o ar fresco, cheio de oxigênio, que penetra até as mais pequenas células do nosso peito e as revigora a partir de dentro. Assim, a pessoa imbuída de espiritualidade, a cada minuto, faz acontecer a respiração. Uma respiração leve, sem ser notada, questionada ou recompensada, acontece simplesmente porque está ali, no ritmo do próprio ser, na respiração da alma. Se o espírito não recebe o ar que necessita, ele sufoca, morre. Sufocar o espírito é desumanizar.

Espiritualidade é afinar os olhos e o espírito para ver céu e terra como um lugar sagrado, como a nossa Casa Comum, Comunidade de Vida e onde podemos celebrar. Temos, então, que:

a) Aprender da sabedoria da Criação, suas leis, para poder viver em harmonia. Não se trata de domar a natureza, trata-se de estabelecer uma nova aliança, baseada no respeito e na admiração. Trata-se de se entender os falares da Terra, alfabetizar-nos ecologicamente para entender a estrutura e a dinâmica dos ecossistemas e os processos que facilitam ou dificultam a sustentabilidade da vida. b) Aprender a conviver dentro do oikos. Nosso futuro comum, parte de um passado e de um presente, que tem uma casa comum. A mudança climática não nos pergunta se somos cristãos, muçulmanos ou hinduístas, não escolhe gênero, ne raça, idade ou ideologia. O que existe é um presente comum e uma tarefa conjunta a ser assumida. Trata-se de construir a unidade a partir da diversidade da vida. (MURAD, 2016, p. 111)

Texto originalmente publicado pela USF- FREI VITORIO MAZZUCO FILHO



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ECOTEOLOGIA PARTE 6- UNIDADE 2: CUIDADO DA CRIAÇÃO E PREOCUPAÇÕES SOCIOAMBIENTAIS 29 Jan 8:57 AM (3 months ago)


 4. DETERIORAÇÃO DA QUALIDADE DE VIDA HUMANA E

DEGRADAÇÃO SOCIAL

A qualidade da vida humana depende da integração do ser humano no mundo na perspectiva de uma vida digna. A vida é original e não pode deixar que a degradação ambiental atinja a espécie humana, de modo que ela seja descartável como uma matéria qualquer.O crescimento das cidades tira o ser humano de seu espaço, e ele tem dificuldade de ter uma vida saudável entre poluição, máquinas, monóxido de carbono emitidos pelos meios de transporte, a poluição sonora e toda a poluição visual. Nas grandes metrópoles, o ser humano tem que viver entre congestionamentos e, premido pelo caos urbano, torna-se prisioneiro de elementos artificiais como asfalto, cimento, metais, vidros, acrílicos e outros que o impedem de ver a natureza.

Espaços que eram de todos, foram transformados em privatizados, após as criações das áreas residenciais que, diversos condomínios vivaram verdadeiros parques ecológicos restritos a alguns poucos endinheirados. Os que são chamados “lixo urbano”, os moradores de rua, são considerados um incômodo para a sociedade urbana e estão condenados a viver dos restos da cidade. Agressividade e violência fazem parte do dia a dia de cidades de grande, médio e mesmo as de pequeno porte. Fazem parte do ritmo diário das cidades, seus centros e seus bairros, o consumo de drogas e álcool, o narcotráfico, as milícias e as invasões.

 IMPORTANTE

“A isto vêm juntar-se as dinâmicas dos mass-media e do mundo digital, que, quando se tornam omnipresentes, não favorecem o desenvolvimento duma capacidade de viver com sabedoria, pensar em profundidade, amar com generosidade. Neste contexto, os grandes sábios do passado correriam o risco de ver sufocada a sua sabedoria no meio do ruído dispersivo da informação. Isto exige de nós um esforço para que esses meios se traduzam num novo desenvolvimento cultural da humanidade, e não numa deterioração da sua riqueza mais profunda. A verdadeira sabedoria, fruto da reflexão, do diálogo e do encontro generoso entre as pessoas, não se adquire com uma mera acumulação de dados, que, numa espécie de poluição mental, acabam por saturar e confundir. Ao mesmo tempo tendem a substituir as relações reais com os outros, com todos os desafios que implicam, por um tipo de comunicação mediada pela internet. Isto permite selecionar ou eliminar a nosso arbítrio as relações e, deste modo, frequentemente gera-se um novo tipo de emoções artificiais, que têm a ver mais com dispositivos e monitores do que com as pessoas e a natureza. Os meios atuais permitem-nos comunicar e partilhar conhecimentos e afetos. Mas, às vezes, também nos impedem de tomar contato direto com a angústia, a trepidação, a alegria do outro e com a complexidade da sua experiência pessoal. Por isso, não deveria surpreender-nos o facto de, a par da oferta sufocante destes produtos, ir crescendo uma profunda e melancólica insatisfação nas relações interpessoais ou um nocivo isolamento”. (FRANCISCO, 2015, p. 29-30) 

Neste ponto de nossa reflexão, temos que alertar para a deterioração da qualidade de vida e a degradação social, vamos elencar mais alguns pontos. No espaço da pós- modernidade, temos a prioridade da economia que enfatiza a produção fundamentada em um consumo destrutivo e usual natureza sem reposição daquilo que é tirado. Assim, se existia uma ordem natural no sistema ecológico de nosso planeta, a exploração dos recursos naturais é um massacre. Basta conferirmos os estragos da mineração que, por si só, merecia todo um capítulo nesta nossa reflexão. A globalização do capital explora sempre o que os países têm de riquezas naturais, como a Amazônia que está aí para ser a maior expressão dessa afirmação, onde contempla-se suas riquezas e depois as levam embora. Existe, realmente, a destruição do sistema de recursos naturais e isso resulta na degradação do potencial produtivo dos ecossistemas.

Países mais desenvolvidos investem com sua tecnologia em países menos avançados, cujo sistema é mais empobrecido de técnicas industriais. Nossos minérios, espécies nativas e biomas são explorados por outros países. As diferenças de nível de desenvolvimento entre países geram transferências de riquezas naturais que trazem um lucro gigantesco para os países que exploram os outros. A exploração da madeira, por exemplo, promove um desmatamento desmedido e a destruição de nosso potencial produtivo natural, e o processo de degradação dos ecossistemas é uma realidade incontestável. Como consequência, temos a erosão, o esgotamento dos recursos e o extermínio de áreas imensas, de suas espécies e mesmo dos que ali habitam.

A acumulação de capital expandiu suas fronteiras e veio morar no Brasil; tirou as práticas agrícolas tradicionais dos nossos colonos, camponeses e da agricultura familiar e instaurou a monocultura industrializada para suprir o mercado externo. Tudo isso interferiu na produtividade natural da terra e gerou pobreza para as populações rurais, como o caso do efeito do cultivo intenso, expansivo e exclusivo da cana de açúcar. Essa

[...] zona possuía nas suas origens os solos tropicais mais férteis. Seu clima favorecia a agricultura, o que explicava a presença, no passado, de abundantes florestas onde cresciam inúmeras árvores frutíferas. Hoje se implantou a cana-de-açúcar. O resultado é que esta região é uma das quais onde a fome faz mais estragos no continente latino-americano. A ausência de hortas e gado criou um problema de alimentação muito grande, numa região em que a agricultura diversificada poderia produzir uma variedade infinita de produtos agrícolas. (CASTRO, 1957, p. 97)

 O processo produtivo tecnológico favoreceu o acumulo de capital, degradou a capacidade produtiva dos ecossistemas e interferiu nas populações que viviam da própria produção. Os recursos que antes mantinham famílias, agora servem apenas como fonte de lucro das grandes potências industriais que perpetuam uma distribuição cada vez mais desigual de oportunidades de trabalho e salário.

Essas transformações culturais, segundo aponta Leff (2018, p. 33), são frutos desse

[...] modo de exploração [que] foram sepultando uma enorme quantidade de conhecimentos práticos elaborados durante séculos de experiência produtiva pelas comunidades autóctones destas regiões, as quais permitiram uma apropriação mais sustentável dos potenciais ecológicos de seus territórios. Desta maneira, o sistema capitalista rompeu a harmonia entre os sistemas naturais e as formações sociais. A implantação de modelos econômicos, tecnológicos e culturais ecologicamente inapropriados durante longa dominação colonial e imperialista gerou uma irracionalidade produtiva, no sentido de um manejo ecológico e energético ineficiente e dos crescentes custos ambientais na produção de valores de uso e de mercadorias. (LEFF, 2018, p. 33)

 Logo, como podemos observar, a devastadora exploração da atualidade causou e continua causando danos irreversíveis, como descreve o autor supracitado, nos ecossistemas naturais, interferindo na evolução e alternativas socio-organizacionais de processos sustentáveis, equilibrados e, sobretudo, igualitário.

CONCLUSÃO

Nesta Unidade, fizemos uma explanação sintética da crise que estamos vivendo, mas com sonhos e esperança de grandes mudanças. Reforçamos que é preciso mudar o mundo e suas relações: o convívio humano e a relação com a Casa Comum.

Os três documentos ecológicos mais importantes do início deste século a Carta da Terra (2003) e a encíclica do Papa Francisco Laudato Sì – Sobre o cuidado da Casa Comum (2015) e a Fratelli Tutti (2020), nasceram da emergência ecológica e da crise da sociedade mundial que não possui “um projeto comum” (Fratelli Tutti). São documentos de alarme e de um derradeiro apelo para fazermos “uma radical conversão ecológica”, se quisermos ainda ter futuro neste pequeno e belo planeta. Essa encíclica é enfática: “Ninguém se salva sozinho, só é possível salvar-nos juntos”. Numa outra formulação mais direta: “Ou nos salvamos todos ou ninguém se salva”. A Carta da Terra é contundente em afirmar: “a escolha é nossa: ou formamos uma aliança global para cuidar da Terra e uns dos outros, ou então arriscar a nossa destruição e a da diversidade da vida”. (BOFF, 2021, p. 9-10)

E dentro destas considerações finais não podemos deixar de mencionar, historiar e citar para a sua leitura o importante documento que transparece e propõe uma ética mundial, uma nova consciência ecológica e planetária e fundamenta o novo paradigma civilizatório: A Carta da Terra. Este valioso documento integrador, com uma clara visão holística que mostra a correlação entre a degradação ambiental, conflitos étnicos, injustiça social, democracia, paz, ética e crise espiritual. Um grito a favor da Terra em face à sua destruição, mas também uma palavra-ação de grande esperança para o futuro da Terra e dos que nela habitam. Os que elaboraram a Carta afirmam:

A Carta da Terra está concebida como uma declaração de princípios éticos fundamentais como um roteiro prático de significado duradouro, amplamente compartido por todos os povos. De forma similar à Declaração Universal dos Direitos Humanos das Nações Unidas, a Carta da Terra será utilizada como um código universal de conduta para guiar os povos e as nações na direção de um futuro sustentável. (SECRETARIA INTERNACIONAL DO PROJETO CARTA DA TIERRA, 1999, p. 12)

O texto da Carta da Terra foi elaborado, a partir de uma ampla discussão que durou muitos anos, foi uma discussão em nível mundial. Começa na ONU, que abraça a questão ecológica em 1972, com o Clube de Roma, o qual faz a primeira avaliação da situação da Terra. Nesse mesmo ano, a ONU organiza em Estocolmo um encontro mundial sobre o meio ambiente como preocupação da humanidade. O futuro do nosso planeta e da humanidade depende das condições ambientais, climáticas e ecológicas. Em 1982, é publicada a Carta Mundial para a Natureza. Em 1987, a Comissão Mundial sobre o Meio Ambiente e Desenvolvimento, também chamada de Comissão Brundtland, propõe o desenvolvimento sustentável (BOFF, 2003, p. ).

Em 1992, por ocasião da Cúpula da Terra, Rio/Eco-92, foi proposta a Carta da Terra que é discutida por organizações não governamentais, grupos comprometidos com a causa, cientistas e governos nacionais. A proposta não se concretizou, mas não desapareceu; pois nasceu a Declaração do Rio sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento. Duas organizações internacionais assumem o projeto: a Cruz Verde Internacional e o Conselho da Terra, apoiadas pelo governo holandês. Em 1995 acontece em Haia, na Holanda, a reunião de 60 representantes de diversas áreas e criaram a Comissão da Carta da Terra. Recolhem- e todos os documentos, princípios, debates, consultas, direito internacional, enfim uma documentação oficial sobre questões ecológicas e surge, então, os “[p]rincípios de conservação ambiental e desenvolvimento sustentado: resumo e reconhecimento” (BOFF, 2003, p. 21).

Em 1997, surge a Comissão da Carta da Terra composta por 23 líderes mundiais, para redigir um primeiro esboço do documento. A coordenação dessa Comissão é formada por Maurice Strong, do Canadá, que é o Coordenador Geral da Cúpula da Terra, Rio-92 e Mikhail Gorbachev, da Rússia, presidente da Cruz Verde Internacional. Essa Comissão apresenta, nesse mesmo ano, durante o Fórum Rio+5, o primeiro esboço de redação. Nos anos 1998 e 1999, há uma discussão ampla em todos os continentes atingindo desde escolas primárias, comunidades de base, centros de pesquisa e ministérios de educação; envolvendo 46 países e mais de 100 mil pessoas sobre a Carta da Terra.

Em abril de 1999, sob a coordenação de Steven Rockfeller, faz-se o segundo esboço da Carta. Em Paris, entre os dias 12 e 14 de março de 2000, na UNESCO, ratificou-se a Carta da Terra com todas as contribuições e foi aprovada pela ONU como uma lei mundial (BOFF, 2003, p. 15-21).

O valor da Carta da Terra é a inter-relação de tudo com tudo, a preocupação com o destino comum da Terra e da Humanidade, formando uma grande comunidade terrena e cósmica. É uma nova cosmologia que traz as referências da física quântica, da biologia e da holística. Em seu preâmbulo, a carta afirma que a Terra está viva e junto com a humanidade faz parte da evolução. É um novo ethos mundial que, de acordo com Boff (2003, p. 15-21), destaca estes pontos:

SAIBA MAIS

Para fazer a leitura completa do texto da Carta da Terra e seus pontos relevantes, tais como: a esperança na responsabilidade humana; a exigência do discurso ecológico e a ética do cuidado, visite:

Disponível em: http://www.cartadaterrabrasil.com.br/prt/Principios_Carta_da_Terra.pdf.

Acesso em: 11 maio 2021.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

BARTHOLOMEW, P. Discurso em Santa Bárbara, Califórnia (8 de novembro de 1997). In: CHRYSSAVGIS, J. (org.). On Earth as in Heaven: Ecological Vision and Initiatives of Ecumenical Patriarch Bartholomew. New York: Fordham University Press, 2012.

BENTO XVI, Papa. Discurso ao clero da diocese de Bolzano-Bressanone. Vatican¸ 2008. Disponível em: https://www.vatican.va/content/benedict-xvi/pt/speeches/2008/august/documents/hf_ben-xvi_spe_20080806_clero-bressanone.html. Acesso em: 2 ago. 2021.

BOFF, L. Água e Ética do cuidado. Brasília: CFFB, 2004.

BOFF, L. Ética e eco-espiritualidade. Campinas: Verus Editora, 2003.

BOFF, L. O doloroso parto da Mae Terra: Uma sociedade de fraternidade sem fronteiras e de amizade social. Petrópolis: Vozes, 2021.

BRASIL. Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas – IPCC. Portal do Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovações, [s. d.]. Disponível em: https://antigo.mctic.gov.br/mctic/opencms/ciencia/SEPED/clima/ ciencia_do_clima/painel_intergovernamental_sobre_mudanca_do_clima.html. Acesso em: 23 ago. 2021.

CAPPIO, Dom Frei Luiz OFM. Rio São Francisco: Pai e Mãe de um povo. Brasília: CFFB, 2004.

CARTA da Terra. Disponível em: http://www.cartadaterrabrasil.com.br/prt/Principios_Carta_da_Terra.pdf. Acesso em: 11 mai. 2021.

CASTRO. J. Geografia da Fome, Brasiliense. São Paulo: Editora Brasiliense, 1957.

FRANCISCO, Papa. Carta Encíclica Laudato Si – Louvado Seja – Sobre O Cuidado Da Casa Comum. São Paulo: Editora Loyola, 2015.

IPCC envia aos governos a versão final do Relatório Especial sobre o Aquecimento Global de 1,5ºC. Eco-Debate, jun. 2018. Disponível em: https://www.ecodebate.com.br/2018/06/06/ipcc-envia-aos-governos-a-versao-final-do-relatorio-especial-sobre-o-aquecimento-global-de-15c/. Acesso em: 11 mai. 2021.

LEFF, E. Ecologia, Capital e Cultura: A territorialização da racionalidade ambiental. Petrópolis: Editora Vozes, 2018.

REIS, É. V. B.; BIZAWU, K. A encíclica Laudato Si à luz do direito internacional do meio ambiente. Veredas do Direito, Belo Horizonte, vol. 12, n. 23, p. 29-65, 2015. Disponível em: http://revista.domhelder.edu.br/index. php/veredas/article/view/598. Acesso em: 2 ago. 2021.

SCHELLNHUBER, H. J. Uma base comum – A encíclica papal, a ciência e a preservação do planeta terra.

Revista IHU on-line, vol 15, n. 469, p. 10-15, 2015. Disponível em: http://www.ihuonline.unisinos.br/media/ pdf/IHUOnlineEdicao469.pdf. Acesso em: 2 ago. 2021.

SECRETARIA INTERNACIONAL DEL PROYECTO CARTA DE LA TIERRA. La Carta de la Tierra; valores y princípios para un futuro sostenible. San José, Costa Rica: UNESCO, 1999.

SIMÕES, J. C. A mudança climática segundo os testemunhos do gelo. Entrevista especial com Jefferson Cardia Simões. [Entrevista concedida a] Andrioli Costa. IHU On-line, [s. l.], 9 jan. 2014. Disponível em: http://www.ihu.unisinos.br/entrevistas/527084-a-mudanca-climatica-segundo-os-testemunhos-do-gelo-entrevista-especial-com-jefferson-simoes. Acesso em: 11 mai. 2021.

Texto originalmente publicado pela USF- FREI VITORIO MAZZUCO FILHO


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ECOTEOLOGIA PARTE 5 - UNIDADE 2 : CUIDADO DA CRIAÇÃO E PREOCUPAÇÕES SOCIOAMBIENTAIS 17 Jan 10:38 AM (3 months ago)


2. A QUESTÃO DA ÁGUA:

A questão da água abrange os quesitos dos recursos hídricos, os problemas das enchentes e tantas outras questões técnicas. O fato de ser um elemento essencial, impacta nos aspectos científicos e antropológicos. A água se torna ainda uma questão ética, pois diz respeito:

Assim, podemos observar que as questões relacionadas à água são muito mais amplas, abrangem, entre outras coisas, o direito que todos têm à água potável e a sua importância para a vida e saúde. Os ecossistemas e a vida humana não se separam. A não qualidade da água incide com a mortalidade infantil, doenças (tais como diarreias, viroses, cólera etc.).

Os aquíferos, que são formações geológicas nos subsolos que contêm águas, e que acabam por se caracterizarem como uma grande riqueza, são também a garantia de reservas para o futuro, mas hoje são adquiridos e explorados por grupos privados e sofrem as consequências das poluições que vêm da química agrotóxica, do lixo industrial e depósitos de lixo. Como resultado, os lençóis freáticos são contaminados. O esgotamento dos recursos naturais tem a ver com o desperdício excessivo, inclusive a prática de jogar água fora sem o cuidado de reutilização.

A vida humana gira em torno da importância da água, pois ela é responsável pelo sadio da vida humana, quando limpa, potável, destilada e mineral. Ela atua e sustenta os ecossistemas, tanto da terra quanto dos oceanos.

Como fazer funcionar os setores sanitários, a agropecuária e todo o sistema industrial? A procura excede à oferta. Posto de outro modo, as grandes cidades e seus edifícios dependem dos grandes sistemas de reservas hídricas, que cada vez mais não conseguem ter o seu volume controlado e, na maioria das vezes, estão abaixo do nível esperado. Isso porque, como exposto anteriormente, a distribuição da água não é igual para a população entre os países ricos e pobres. Os países que sofrem grandes períodos de seca não conseguem resolver a produção suficiente de alimentos e à fome se une a questão da água. Entre os pobres e seus lugares onde habitam, a qualidade da água é ruim, sem tratamento, e isso mata. A água está privatizada nas mãos de grandes grupos que a transformam em mercadoria, com preço nem sempre acessível. 

Nem sempre pensamos que saneamento básico é prioridade para governanças. Obras que estão debaixo da terra não aparecem como os grandes viadutos, edifícios, monumentos e praças. As valetas, esgoto ao ar livre, descargas humanos e industriais chegam aos rios e às fontes. Os produtos químicos alcançam rios, mares, lagos, riachos e lagoas.

IMPORTANTE

Tendo isso em vista, é imprescindível salientarmos, por intermédio das palavras do Papa Francisco que, “[e]nquanto a qualidade da água disponível piora constantemente, em alguns lugares cresce a tendência para se privatizar este recurso escasso, tornando-se uma mercadoria sujeita às leis do mercado. Na realidade, o acesso à água potável e segura é um direito humano essencial, fundamental e universal, porque determina a sobrevivência das pessoas e, portanto, é condição para o exercício dos outros direitos humanos. Este mundo tem uma grave dívida social para com os pobres que não têm acesso à água potável, porque isto é negar-lhes o direito à vida radicado na sua dignidade inalienável. Esta dívida é parcialmente saldada com maiores contribuições econômicas para prover de água limpa e saneamento as populações mais pobres. Entretanto nota-se um desperdício de água não só nos países desenvolvidos, mas também naqueles em vias de desenvolvimento que possuem grandes reservas. Isto mostra que o problema da água é, em parte, uma questão educativa e cultural, porque não há consciência da gravidade destes comportamentos num contexto de grande desigualdade. Uma maior escassez de água provocará o aumento do custo dos alimentos e de vários produtos que dependem do seu uso. Alguns estudos assinalaram o risco de sofrer uma aguda escassez de água dentro de poucas décadas, se não forem tomadas medidas urgentes. Os impactos ambientais poderiam afetar milhares de milhões de pessoas, sendo previsível que o controle da água por grandes empresas mundiais se transforme numa das principais fontes de conflitos deste século”. (FRANCISCO, 2015, p. 25-26)

 A riqueza da nossa bacia hidrográfica é inestimável. Poderíamos preencher páginas e páginas discorrendo sobre o Rio Amazonas e seus afluentes e todos os importantes rios que determinam a história e o desenvolvimento de nosso país. Mas vamos nos ater ao Rio São Francisco, um dos mais importantes de nosso país. Queremos sintetizar algumas ideias de Dom Frei Luiz Flávio Cappio OFM, que fez uma caminhada da nascente até a foz do São Francisco e lutou e luta pela vida desse rio.

 O primeiro nome deste rio era Opará, que significa, Rio Mar. Não é o único Rio Mar de nosso imenso país, mas o Rio São Francisco foi e é um espaço sagrado para os povos que habitam as suas margens. O nome vem do dia da descoberta da sua foz, 04 de outubro de 1501, pelos colonizadores portugueses. Ele se transformou em estrada para as conquistas das nossas riquezas naturais, canal de entrada para o interior de uma terra, então, totalmente desconhecida. Se o seu leito serviu para viabilizar novas descobertas, suas margens conheceram a escravidão, os saques e a morte. O rio continuou, apesar dessa primeira invasão, sendo essencial para a vida de todos que moravam e moram na sua proximidade, sobretudo os povos indígenas.

São 2700 km de extensão e mais de 13 milhões de habitantes distribuídos em inúmeras cidades, mais de 450 municípios, tais como as seguintes cidades importantes na história do rio:

O Rio São Francisco é tão importante para a história nacional, em virtude de que, na questão da água, ele é por si só uma questão de vida e morte. Quando um povo começa a ir embora das margens é porque o rio está definhando. Grandes fazendas de gado e grandes projetos agroindustriais interferem na vida do rio. Se o rio um dia foi canal para a expansão do conhecimento do nosso território, hoje ele é itinerário da expansão do capital. Essa é a sua segunda exploração e invasão. Se um dia os índios de suas beiras foram exterminados, hoje são os pobres. Eles estão fora dos grandes projetos que exploram as riquezas naturais do grande rio.

Isso posto, é importante lembrar que o desmatamento sem limites do seu bioma característico (que é o cerrado e as matas ciliares) interfere demais nas condições das águas do rio. O solo arenoso do cerrado faz a natural captação e depósito das águas da chuva, que alimenta o São Francisco e seus afluentes. A produção de carvão, para a siderurgia, as mega plantações da monocultura do eucalipto, além de dizimar o cerrado, vão secando as fontes das águas correntes que alimentam o grande rio.

Mil hectares por dia são desmatados, sofrendo, também, as consequências as matas das beiras do rio, as matas ciliares, que são protetoras do leito do rio e importantes para peixes, pássaros e outros animais. Cresce o assoreamento do rio desde as suas fontes por causa da ocupação de suas margens e, com isso, ele, que antes tinha as águas límpidas, hoje carrega dejetos das indústrias, rejeitos da mineração, resíduos de adubo químico, esgotos e lixo das cidades, agrotóxicos e recebe grande volume advindo dos esgotos a céu aberto. Os esgotos de Belo Horizonte também vão para o rio, e o povo bebe a água contaminada, sem tratamento.

SAIBA MAIS

 Para conhecer mais afundo a história do Rio e dos efeitos causados pelo homem, indicamos a leitura do livro escrito pelo Dom Frei Luís Flávio Cappio em parceria com Adriano Martins e Renato Kirchner, intitulado Rio São Francisco – Uma Caminhada Entre a Vida e a Morte, publicado pela Editora Vozes, em 2000.

Para aproveitar o potencial energético do rio São Francisco, concretiza-se a política agressiva das construções de barragens que têm consequências ecológicas criminosas, influindo na pesca e nas plantações. Se melhorou para a indústria não melhorou a vida do povo que vai adoecendo com alergias, doenças bronco-pulmonares, câncer, perda de visão, abortos, fortes dores de cabeça e febre. Nas palavras de Dom Frei Luiz Flávio Cappio:

Vamos aprendendo com São Francisco, o santo do rio, a comunhão fraterna de toda a Natureza. Ser semeadores de vida para as gerações futuras plantando muitas árvores pela pureza das águas. Iniciar um profundo e amplo trabalho de educação ecológica. Cessar o desmatamento dos cerrados e a implantação de monoculturas de eucalipto no Alto e Médio São Francisco. Iniciar um programa urgente de recomposição das matas ciliares do rio e seus afluentes, promovendo uma rigorosa fiscalização sobre a destruição das matas remanescentes. Fazer um levantamento criterioso e detalhado sobre as atividades poluidoras do rio, promovendo uma fiscalização eficaz. Iniciar programas de saneamento básico e a instalação de estações de tratamento para esgotos sanitários. Promover a valorização e a proteção de ecossistemas da bacia do São Francisco, que estão sendo veloz e silenciosamente destruídos: cerrados, mata seca, caatingas, lagoas marginais, várzeas e manguezais. Promover um gerenciamento do múltiplo uso das águas do rio, irrigação, geração de energia, consumo doméstico e industrial, que seja racional, justo, democrático e solidário com as gerações presentes e futuras. Promover um amplo debate sobre as consequências do modelo de desenvolvimento em curso, ecologicamente insustentável, concentrador de terras, excludente em relação aos pequenos produtores ribeirinhos e voltado para a exportação. Democratizar o planejamento dos programas e ações de desenvolvimento do vale, com a participação ativa dos setores sociais, hoje marginalizado e penalizado pelas atuais políticas. Desenvolver e difundir técnicas alternativas e sustentáveis de agricultura, com base na agroecologia, que aliadas a uma política agrária desconcentrada viabilizem e fortaleçam a pequena produção diversificada de alimentos provocando, consequentemente, a fixação do homem no campo e a melhoria de vida para os pequenos agricultores da região. Pesquisar alternativas de produção de energia que propiciam a reorientação da política energética em vigor. Reorientar os incentivos à industrialização, viabilizando a implantação descentralizada de pequenas indústrias e unidades de beneficiamento não poluentes, cujo produto final seja também de consumo local ou regional. Reorientar a política e a prática educacionais na região, erradicando o analfabetismo e promovendo uma melhor compreensão da realidade, a valorização das culturas locais e regionais, o exercício da cidadania e uma relação de respeito e interação equilibrada com o meio ambiente. Promover a solidariedade internacional, na busca de reverter as relações de dominação que tornam regiões pobre como o Vale do São Francisco ainda mais pobres. (CAPPIO, 2004, p. 5-10)

Apesar de este ser um assunto muito debatido, ao longo dos anos, o fato é que a destruição do Rio São Francisco continua relevante por causa de megaprojetos que atentam contra a natureza ainda nos dias atuais. O referido Rio é apenas um exemplo de que a água faz parte do equilíbrio do sistema da mãe terra, pois este nosso planeta, em sua maior parte é composto de água. A harmonia da terra depende da água dos rios, dos lagos, dos mares, dos oceanos e das fontes subterrâneas. Logo, desiquilibrar as águas é desiquilibrar a terra.

Dentre os recursos naturais, a água já vai dando mostras cada vez maior escassez, de quão pouca água potável temos disponível para o nosso consumo. À vista disso, implica-se a necessidade do cuidado com esse bem natural, que é patrimônio de todos, mas que vem sendo cada vez mais privatizada, o que a impede de ser acessível a todos. 

IMPORTANTE

Em seu estudo, Leonardo Boff (2004, p. 12-13) defende que, no atual contexto geopolítico, “[h]á grande disparidade na distribuição dos recursos hídricos na Terra. 60% da água está em apenas 9 países, entre eles o Brasil, enquanto 80 países (40%) enfrentam a escassez. Pouco menos de 1 bilhão de pessoas consomem 86% da água existente, 1,4 bilhões de pessoas não têm acesso a quantidade suficiente de água potável, isso equivale a oito vezes a população do Brasil, e 2 bilhões não dispõem de um sistema de purificação de água de esgoto. 50% da água tratada é desperdiçada. Pior ainda: 85% das doenças nos países pobres estão ligadas à quantidade e à qualidade da água.

O cenário brasileiro é promissor e, ao mesmo tempo, preocupante. Detemos 13% de toda água doce do planeta, 5,4 trilhões de metros cúbicos, mas ela é desigualmente distribuída: abundante na região amazônica e no Pantanal e escassa no semiárido nordestino, onde vivem 28% da população, dispondo de apenas 5% de recursos hídricos. O Sul e o Sudeste, onde vivem 60% da população são úmidos, mas escasseia água limpa. Ademais, 39 milhões de brasileiros não tem acesso à água tratada (23% da população), o que explica o índice de mortalidade infantil na ordem de 29 a cada mil nascidos. 46% da água que usamos é desperdiçada; daria para abastecer toda a França, Bélgica, Suíça e norte da Itália.

 O cenário futuro da humanidade é preocupante. Daqui há 21 anos, em 2025, haverá 8 bilhões de pessoas, das quais 3 bilhões com acesso insuficiente à água e 5 bilhões com problemas sérios de quantidade da água. Como se depreende, aponta-se aqui grave problema social mundial referente a água”.

 Fonte: BOFF, Leonardo. Água e Ética do cuidado. Brasília: CFFB, 2004.

Embora os países estejam elaborando regras de gerenciamento da água, não existe uma legislação internacional sobre a questão. A ONU fez o alerta de que no futuro haverá guerras para garantir acesso à água potável. Da guerra do petróleo à guerra da água. Mercantilizar a água para daí extrair o lucro. Visite cidades do nosso país que têm Parque das Águas e verá que esses parques e suas fontes pertencem a multinacionais. Para entrar e consumir você tem que pagar. A fonte da vida torna-se fonte de lucro.

3. PERDA DA BIODIVERSIDADE

A biodiversidade compreende as espécies de seres vivos que existem na biosfera com toda a sua diversidade, que podem ter existido em determinadas épocas e continuam a existir; e abrangem regiões com seus biomas, mas sempre na diversidade. As riquezas dos recursos da terra são preciosas, mas conheceram a depredação. E o uso utilitarista da biodiversidade sabemos de onde vem: a atividade econômica e comercial com uma desenfreada produção.

Florestas e reservas minerais destruídas, exterminam espécies. Sem a diversidade das espécies não teremos um futuro saudável em termos de alimentação e soluções clínicas para a cura de enfermidades. A genética busca recursos na diversidade das espécies, mas sem regulamentar a exploração, não teremos mais matéria prima.

 As espécies possuem grande valor, alguns desses valores não conheceremos porque já desaparecimento de inúmeras espécies. Outras reservas vegetais, minerais e animais tendem a se perder de modo definitivo. Caça predatória para venda, indústrias que geram morte de aves, mamíferos e répteis parecem não nos afetar. Usamos bolsas, calçados e roupas sem nenhum problema de consciência. Pássaros, insetos e roedores desaparecem por causa dos venenos espalhados pela agroindústria. Os ecossistemas e seus microrganismo passam despercebidos pela maioria da humanidade.

Existem cientistas pesquisando e técnicos estudando os melhores modos para implementar boas intervenções de preservação. Mas sabemos que muitos destes sofrem perseguições de grupos de interesse no uso irresponsável da natureza. Ambientalistas sabem que têm a própria vida ameaçada por defenderem que a vida está, sim, ameaçada no seu todo. Uma terra linda, rica de paisagens naturais e de recursos, mas que está se tornando poluída, descolorida, enfumaçada e cinzenta. Nós, seres humanos, temos limites para adentrarmos em certos lugares já contaminados, mas o consumo, não tem limites para entrar.

IMPORTANTE

Voltando-nos, novamente, para a Encíclica Laudato Si, devemos frisar que “[q]uando se analisa o impacto ambiental de qualquer iniciativa econômica, costuma-se olhar para os seus efeitos no solo, na água e no ar, mas nem sempre se inclui um estudo cuidadoso do impacto na biodiversidade, como se a perda de algumas espécies ou de grupos animais ou vegetais fosse algo de pouca relevância. As estradas, os novos cultivos, as reservas, as barragens e outras construções vão tomando posse dos habitats e, por vezes, fragmentam-nos de tal maneira que as populações de animais já não podem migrar nem mover-se livremente, pelo que algumas espécies correm o risco de extinção. Existem alternativas que, pelo menos, mitigam o impacto destas obras, como a criação de corredores biológicos, mas são poucos os países em que se adverte este cuidado e prevenção. Quando se explora comercialmente algumas espécies, nem sempre se estuda a sua modalidade de crescimento para evitar a sua diminuição excessiva e consequente desequilíbrio do ecossistema.

O cuidado dos ecossistemas requer uma perspectiva que se estenda para além do imediato, porque, quando se busca apenas um ganho econômico rápido e fácil, já ninguém se importa realmente com a sua preservação. Mas o custo dos danos provocados pela negligência egoísta é muitíssimo maior do que o benefício econômico que se possa obter. No caso da perda ou dano grave dalgumas espécies, fala-se de valores que excedem todo e qualquer cálculo. Por isso, podemos ser testemunhas mudas de gravíssimas desigualdades, quando se pretende obter benefícios significativos, fazendo pagar ao resto da humanidade, presente e futura, os altíssimos custos da degradação ambiental”. (FRANCISCO, 2015, p. 28)

Precisamos fazer justiça a países que priorizam a conservação da natureza, na terra e no mar, procurando restaurá-la ao que era a sua constituição original. Talvez, nós que aqui habitamos, não compreendemos o porquê de priorizar o discurso e as práticas sobre a defesa da Amazônia, das florestas tropicais, das bacias fluviais, dos lençóis freáticos, do Pantanal, e dos polos glaciares. Queimadas e derrubadas, terraplenagens, garimpos, loteamentos e condomínios, sem a devida análise de impacto ambiente, produzem perda de biodiversidade, mas nem sempre isso está na pretensa verdade do marketing empresarial. Por um lado, a substituição da flora silvestre por monoculturas de arvores florestais, não só causa grande impacto na biodiversidade da flora, como também da fauna que nela abriga.

IMPORTANTE

Por outro lado, nas palavras do Papa, “[o]s oceanos contêm não só a maior parte da água do planeta, mas também a maior parte da vasta variedade dos seres vivos, muitos deles ainda desconhecidos para nós e ameaçados por diversas causas. Além disso, a vida nos rios, lagos, mares e oceanos, que nutre grande parte da população mundial, é afetada pela extração descontrolada dos recursos fictícios, que provoca drásticas diminuições dalgumas espécies.

E, no entanto, continuam a desenvolver-se modalidades seletivas de pesca, que descartam grande parte das espécies apanhadas. Particularmente ameaçados estão organismos marinhos que não temos em consideração, como certas formas de plâncton que constituem um componente muito importante da cadeia alimentar marinha e de que dependem, em última instância, espécies que se utilizam para a alimentação humana” (FRANCISCO, 2015, p. 29).

Entre tantas outras vidas marinhas, como corais, peixes e algas que estão ameaçadas, a qualidade de nossas vidas também é afetada, com o aumento das temperaturas, em virtude das queimadas e desflorestamentos, com a escassez de alimentos advinda da utilização de “[...] métodos de pesca destrutivos, nomeadamente os que utilizam cianeto e dinamite” (FRANCISCO, 2015, p. 30), que afeta, sobretudo, aos mais humildes.

Estamos fazendo pressão suficiente e eficiente sobre nossa governança, cobrando de onde vêm e para onde vão as licitações? É indispensável que os governos invistam e apoiem as pesquisas para atenuar e sanar o impacto sobre o meio ambiente. Somos criaturas entre as criaturas e estamos interligados. Todos precisam de todos e de tudo. Isto não deve ser apenas um conselho, mas a concretização em programa de soluções que evitem extinções.

Texto originalmente publicado pela USF- FREI VITORIO MAZZUCO FILHO



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ECOTEOLOGIA PARTE 4 - UNIDADE 2: CUIDADO DA CRIAÇÃO E PREOCUPAÇÕES SOCIOAMBIENTAIS 13 Jan 10:30 AM (3 months ago)


 INTRODUÇÃO

O tema desta Unidade faz parte de um novo paradigma com relação à vida e à natureza. Nós temos a responsabilidade de fazer a nossa parte no cuidado para com a nossa Casa Comum, pois recebemos gratuitamente a obra sagrada de Deus como herança e como um bem para as nossas vidas. Como retribuir? Como estamos em um curso de ecoteologia, o que buscamos é motivar, sob o olhar espiritual, todas as experiências já feitas, de um modo prático ou conceitual, relacionando com a experiência religiosa-espiritual.

 As questões do cuidado da Criação e as preocupações socioambientais têm movimentado o mundo. Antes, era iniciativa de um pequeno grupo de militantes, depois, foi abraçado por grandes cientistas, pesquisadores e especialistas das mais diversas áreas e, hoje, é um grande movimento ecológico. Não vamos esgotar aqui o tema, mas esta unidade tem a função de ser uma introdução à causa socioambiental, de maneira a propiciar a conscientização e instigar a participação desta enorme e ampla rede de pessoas, de grupos, de várias organizações, que lutam para a melhoria da vida em nossa terra tão desgastada, abusada e ferida. O tema, embora seja um novo paradigma, traz a contribuição de muitas tradições que nos educaram para uma sensibilidade ecológica, como vimos na primeira unidade. Tudo se transforma num grande, atual e urgente compromisso para garantir a qualidade da vida e o futuro do nosso planeta.

Saiba mais

Com o intuito de ilustrar este momento da reflexão e paradigma, deixamos a indicação da Canção “O Sal da Terra”, composta por Beto Guedes e Ronaldo Bastos, em 1981, que você pode conferir com a interpretação de Beto Guedes no link a seguir.

Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=VHPf5qH785s. Acesso em: 02 ago. 2021.

 1. CUIDADO DA CRIAÇÃO E PREOCUPAÇÕES SOCIOAMBIENTAIS

 Os pontos que compõem esta unidade estão totalmente baseados na Carta Encíclica do Papa Francisco Laudato Sì, sobre o cuidado da casa comum. Toda casa é o lugar nascente e emergente da nossa existência. Entender a Terra como nossa casa é ter para com ela cuidados maternais, paternais e fraternais. Não podemos apenas usar de um modo irresponsável os seus bens gratuitamente a nós oferecidos, mas temos que administrá-los, sem saques, dominação e abusos.

A nossa identidade original vem de sermos feitos do barro movimentado com o sopro de vida do Criador (cf.Gn 2,7). Assim, se o ser humano se descontrola em suas atividades, ele causa a destruição desenfreada da matéria prima que está na natureza.

Criamos uma evoluída e tecnológica cultura industrial que, com toda a sua força de produção, pode voltar-se contra o ser humano e a natureza.

O consumo imediato coloca a vida em risco, porque tudo é uma cadeia natural de ligações mútuas em sistemas ordenados, a destruição de um pode gerar a morte de outros. A amplidão da natureza está ligada de um modo muito especial à convivência humana.

Onde nós mesmos somos a última instância, onde o conjunto é simplesmente nossa propriedade e onde o consumismo somente para nós mesmos. E o desperdício da criação começa onde já não reconhecemos qualquer instância acima de nós, mas vemo-nos unicamente a nós mesmos (BENTO XVI, 2008, [n. p.]).

 Líderes religiosos, cientistas, organizações sociais, filósofos, teólogos e os papas; dentro e fora das Igrejas fazem apelos proféticos, reflexões e inúmeros documentos para evitar que se desfigure o ambiente. O Patriarca Ecumênico Bartolomeu defende que, 

[q]uando os seres humanos destroem a biodiversidade na criação de Deus; quando os seres humanos comprometem a integridade da terra e contribuem para a mudança climática, desnudando a terra das suas florestas naturais ou destruindo as suas zonas úmidas, quando os seres humanos contaminam as águas, o solo, o ar...tudo isso é pecado [...] um crime contra a natureza é um crime contra nós mesmos e um pecado contra Deus. (BARTHOLOMEW, 2012, [n. p.])

 1.1 POLUIÇÃO E MUDANÇAS CLIMÁTICAS

 Desde o ano de 1984, relatórios oficiais, sobretudo os vindos da Organização das Nações Unidas (ONU), como a Avaliação Ecossistêmica do Milênio (2001-2005), e outros tantos relatórios, mostram o estado do planeta Terra, sobretudo os sistemas de sustentação da vida: água, ar puro, solos, alimentos, controle climático. Todos estão num processo de degradação. A poluição afeta os seres humanos e todos os seres vivos, e isto não apenas em momentos de catástrofe, mas em todos os momentos da vida diária. A saúde é comprometida pela inalação dos gases dos combustíveis usados nas máquinas, dos meios de locomoção, da cozinha e do sistema de calefação. E temos que lembrar as chaminés das indústrias, a descarga de resíduos tóxicos nos solos, bem como fertilizantes, inseticidas, adubos não orgânicos. 

Saiba mais

 Para conhecer um pouco mais a respeito do relatório da ONU mencionado acima, visite o

resumo feito por Antonio Gonçalves sobre o Relatório de Avaliação Ecossistêmica do Milênio:

 GONÇALVES, Antonio Gabriel Cerqueira. Resumo do Milliennium Ecosystem Assessment

(Avaliação Ecossistêmica do Milênio – AEM). Diário Verde, 2009.

 Disponível em: http://diariodoverde.com/avaliacao-ecossistemica-do-milenio/. Acesso em: 23 ago. 2021.

 O lixo que se produz, se espalha pelo excesso. Há elementos que não são biodegradáveis que vêm da demolição, da indústria farmacêutica, do lixo hospitalar, dos componentes eletrônicos, dos produtos radioativos. Tudo isso está atrelado à cultura do descarte com baixo aproveitamento para a reciclagem. Não se reutilizam suficientemente papéis e papelões, embalagens e outros itens de consumo.

 Muito especial para a vida humana é o clima, mas preocupa-nos o aquecimento global que mexe com as marés que provocam o assustador crescimento do nível do mar, terremotos e maremotos. Tudo isso vem do efeito estufa, da concentração de gases que impede a natural diluição dos raios solares no espaço atmosférico. A floresta é cortada para criar um outro tipo de atividade agrícola. À vista disso, diminuiu-se a água potável, as calotas polares estão derretendo e há liberação desenfreada de gás metano. Ao mudar-se a cadeia alimentar, os ecossistemas são alterados.

Saiba mais

Indicamos a leitura do artigo de Hans Joachim Schellnhuber intitulado “Uma base comum – A

encíclica papal, a ciência e a preservação do planeta Terra”, que foi publicado na Revista do

Instituto Humanistas Unisinos, em 2015.

Disponível em: http://www.ihuonline.unisinos.br/media/pdf/IHUOnlineEdicao469.pdf.

Acesso em: 11 maio 2021.


IMPORTANTE

Nas palavras do Papa Francisco, é indispensável saber que “[a]s mudanças climáticas são um problema global com graves implicações ambientais, sociais, econômicas, distributivas e políticas, constituindo atualmente um dos principais desafios para a humanidade. Provavelmente, os impactos mais sérios recairão, nas próximas décadas, sobre os países em vias de desenvolvimento. Muitos pobres vivem em lugares particularmente afetados por fenômenos relacionados com o aquecimento, e os seus meios de subsistência dependem fortemente das reservas naturais e dos chamados serviços do ecossistema como a agricultura, a pesca e os recursos florestais. Não possuem outras disponibilidades econômicas, nem outros recursos que lhes permitam adaptar-se aos impactos climáticos ou enfrentar situações catastróficas, e gozam de reduzido acesso a serviços sociais e de proteção. Por exemplo, as mudanças climáticas dão origem a migrações de animais e vegetais que nem sempre conseguem adaptar-se; e isto, por sua vez, afeta os recursos produtivos dos mais pobres, que são forçados também a emigrar com grande incerteza quanto ao futuro da sua vida e dos seus filhos. É trágico o aumento de emigrantes em fuga da miséria agravada pela degradação ambiental, que, não sendo reconhecidos como refugiados nas convenções internacionais, carregam o peso da sua vida abandonada sem qualquer tutela normativa. Infelizmente, verifica-se uma indiferença geral perante estas tragédias, que estão acontecendo agora mesmo em diferentes partes do mundo. A falta de reações diante destes dramas dos nossos irmãos e irmãs é um sinal da perda do sentido de responsabilidade pelos nossos semelhantes, sobre o qual se funda toda a sociedade civil”. (FRANCISCO, 2015, p. 23)

Na busca de recursos, cresce o ambicioso poder econômico que esconde os problemas e os sintomas de tudo o que acima descrevemos. E o modelo de produção e consumo aumenta sem chegar a uma política de contenção. O que tem sido feito para conter esse modelo? Um passo dado foi a implementação do Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas – IPCC, um órgão criado pela ONU para avaliar a ciência relacionada à mudança climática. Foi estabelecido pelo Programa das Nações Unidas para o Meio Ambiente e pela Organização Meteorológica Mundial (OMM), em 1988, para fornecer avaliações científicas regulares sobre mudanças climáticas, suas implicações e possíveis riscos futuros, bem como para propor adaptação, mitigação e estratégias; tem 195 estados membros. (BRASIL, [s. d.], [n. p.])

 As avaliações do IPCC fornecem aos governos, em todos os níveis, informações científicas que podem ser usadas para desenvolver políticas climáticas. As avaliações do IPCC são um insumo fundamental nas negociações internacionais para combater as mudanças climáticas. Os relatórios do IPCC “[...] são elaborados e revisados em várias etapas, garantindo objetividade e transparência” (BRASIL, [s. d.], [n. p.]). O IPCC avalia e analisa artigos científicos publicados cada ano, identifica os acordos da comunidade científica, mobiliza centenas de cientistas, trata da base da ciência física, analisa os impactos, adaptação e vulnerabilidade, elabora relatórios sobre os oceanos, desertificação, degradação da terra, gestão sustentável da terra, segurança alimentar, fluxos de gases, ecossistemas terrestres, glaciologia (o que as grandes geleiras tem a dizer sobre o nosso planeta).

 Há estudos para a “[...] reconstrução da história do clima e da composição química da atmosfera a partir de amostras de neve e de gelo que acumularam através de milhares e milhares de anos” (SIMÕES, 2014, [n. p.]). Tais estudos são importantes para provar que a degradação do ambiente criou o efeito estufa, como um processo natural de maior emissão de gases do que já existente na natureza.

 Negacionistas do conhecimento científico não acreditam nessas mudanças climáticas e tentam refutar o aquecimento global e o derretimento das calotas polares. Por ignorarem que, se mudamos a química da atmosfera, mudamos o balanço de energia do planeta, há pessoas que mostram um total desconhecimento da ciência chamada paleoclimatologia, que estuda há 200 anos a evolução do clima, e que considera a variabilidade das manchas solares e de processos cósmicos (SIMÕES, 2014, [n. p.]).

Os avanços dos estudos científicos mostram um conjunto de evidências. A ciência tem mostrado com clareza que o aquecimento global é resultante da emissão desenfreada de gases com efeito estufa decorrentes da queima de combustíveis fósseis. Logo, torna-se urgente reduzir essas emissões até reverter o aquecimento. Enquanto isso não acontecer, todos estamos sob risco.

Para entendermos melhor as consequências do aquecimento global, devemos ter em mente que questões básicas, como a distribuição e consumo de energia não chegam a todos da mesma forma. Com isso, grande parcela da nossa população é afeta.

A produção de energia à base de combustíveis fósseis em larga escala que foi iniciada pela Revolução Industrial e acelerada no século XX levou a um grande desenvolvimento humano – para uma minoria. Para muito poucos, ela gerou extrema riqueza. Do outro lado desse desenvolvimento se encontram os pobres e os mais pobres dentre os pobres. A violência estrutural desse desenvolvimento predetermina a vida deles. As fontes de energia de combustíveis fósseis são bens privados, de propriedade de empresas ou controlados por governos. Assim, o acesso à energia depende em grande parte dos recursos financeiros do indivíduo. (SCHELLNHUBER, 2015. p. 10)

 Não queremos ser pessimistas, mas a crise ambiental pela qual estamos passando se deve à lentidão na implementação de soluções e à demora em encontrar medidas radicais para combater as mudanças climáticas. A produção sem controle favorece a indiferença dos países ricos que só visam ao crescimento econômico. Industrializar a economia não se constitui um problema. Na verdade, o problema está em não preservar os recursos naturais que cada vez mais vão se esgotando. Mais do que uma questão técnica industrial é uma questão moral, que

[...] exige, portanto, uma tomada de consciência sobre o perigo e uma responsabilidade planetária constituída na solidariedade entre os povos e na cooperação internacional entre os países desenvolvidos e não desenvolvidos, endossando a mesma luta contra a destruição do planeta. (REIS, 2015, p. 32)

Texto originalmente publicado pela USF- FREI VITORIO MAZZUCO FILHO



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ECOTEOLOGIA PARTE 3- UNIDADE 1: INTER-RELAÇÕES E CONTRIBUIÇÕES ECOAMBIENTAIS DAS RELIGIÕES 13 Jan 9:22 AM (3 months ago)

 


4.O COMPROMISSO DAS IGREJAS CRISTÃS COM A JUSTIÇA SOCIOAMBIENTAL

“Quando o homem aprender a respeitar até o menor ser da criação, seja animal ou vegetal, ninguém precisará ensiná-lo a amar seus semelhantes.” (Albert Schweitzer, Prêmio Nobel da Paz, 1952)

Todos nós sabemos da importância socioambiental para a sobrevivência do planeta. Por séculos o ser humano retirou da terra tudo o que precisou para seu sustento, e ainda o faz com grande ferocidade – sem generalizar, pois há quem ainda cuide da terra, adubando e plantando para seu sustento e dos demais.

Igrejas de diversas denominações religiosas sabem da urgente necessidade do cuidado com o planeta Terra, que se encontra com seus recursos naturais superexplorados e, em alguns lugares, já esgotados.

O cristianismo reconhece a tensão existente entre a responsabilidade da humanidade no que diz respeito ao cuidar da criação de Deus e a tendência humana de rebelar-se contra Deus. Várias igrejas cristãs, nas últimas décadas, revisaram seus ensinamentos e práticas à luz da crise ambiental. (FRANKY; AGUIRRE, 2016, p. 129)

O líder religioso da Igreja Católica, Papa Francisco, escreve na Laudato Si, sobre o cuidado da casa comum, que é urgente refletir, dialogar e buscar soluções para a crise ecológica em que vivemos. Devido ao grande crescimento da população, o ambiente natural está perdendo espaço; o ritmo de consumo, desperdício e alterações do meio ambiente superou as possibilidades do planeta. O estilo de vida atual é insustentável.

Durante o Encontro Internacional de Oração pela Paz, organizado em Roma pela Comunidade de Santo Egídio, no dia 20 de outubro de 2020, Bartolomeu I envia mensagens para os ilustres representantes das grandes religiões do mundo. Em sua carta, o bispo ortodoxo atenta que devemos cuidar da nossa casa comum, ou seja, salvar e proteger o ecossistema da terra. Reforça que os quatro elementos naturais – ar, água, fogo e terra – são fundamentais para o desenvolvimento harmonioso da vida e o futuro normal do mundo.

O Papa Francisco menciona na Laudato Si que o ambiente humano e o ambiente natural degradam-se em conjunto. Não podemos enfrentar a degradação ambiental se não prestarmos atenção às causas que têm a ver com a degradação humana e social. É fundamental buscar soluções integrais para os sistemas naturais e sociais.

A melhor maneira de colocar o ser humano no seu lugar e acabar com a sua pretensão de ser dominador absoluto da terra é propor a figura de um Pai Criador e único dono do mundo.

Hoje, a Igreja não diz de forma simplista que as outras criaturas estão totalmente subordinadas ao bem do ser humano. A humanidade é chamada a tomar consciência da necessidade de mudanças de estilo de vida, de produção e de consumo, para combater o aquecimento global ou, pelo menos, as causas humanas que o produzem ou o acentuam.

A maior parte dos habitantes do planeta declara-se crente, e isso deveria levar as religiões a estabelecerem diálogo entre si, visando ao cuidado da natureza, à defesa dos pobres e à construção de uma trama de respeito e de fraternidade.

Dentro do mosaico do pluralismo religioso há uma importante tarefa para a tradição judeu-cristã de dar um giro paradigmático, para ser coerente com o cuidado da Criação. Daí que escrutinar o Apocalipse e interpretar adequadamente as Sagradas Escrituras deve ser um dos principais exercícios para que se estruture uma ecoteologia cristã, pertinente ao mundo de hoje. (FRANKY; AGUIRRE, 2016, p. 133)

O cuidado do meio ambiente faz parte da missão da Igreja Metodista, que teve definido o ano de 2019 como um tempo para pensar o cuidado com o meio ambiente, com o tema “Discípulas e discípulos nos caminhos da missão cuidam do meio ambiente”. Esse tema propõe, como uma das sugestões de ação, o desenvolvimento de um programa de educa- ção ambiental que contemple assuntos como consumo consciente, uso racional da água e da energia, combate à poluição, tratamento adequado do lixo e alimentação saudável.

A Igreja Anglicana foi fundada na Inglaterra em 1534, por meio do Rei Henrique VIII, que rompeu com a Igreja Romana e sua dominação papal. Assim como a Igreja Católica, segue as Sagradas Escrituras e pratica os sacramentos do Batismo e da Eucaristia.

No início do ano de 2019, a Rede Ambiental da Comunhão Anglicana (ACEN – Anglican Communion Environmental Network) solicitou a todos anglicanos do mundo que utilizassem menos plásticos na Quaresma, com a intenção de proteger o meio ambiente.

A coordenadora ambiental da Igreja Anglicana do Sul da África, Cônega Rachel Mash, disse que por volta de 2050 haverá mais plástico do que peixes nos oceanos. “Nós produzimos aproximadamente 300 milhões de toneladas de plástico todos os anos, e metade disto é descartável”, informou. “Mundialmente, apenas 10 a 13 por cento de itens plásticos são reciclados” (PARÓQUIA DE SÃO JOÃO, 2019, [n. p.]).

Os anglicanos realizaram algumas atividades, dentre elas as seguintes: caminhada de oração/caminhada em meio a Covid-19; Dia Mundial dos Animais; Dia Mundial de Oração pela Criação; Serviço Ecumênico Juvenil (ACNS, 2020).

No dia 31 de agosto de 2017, em Astana, no Cazaquistão, os líderes religiosos muçulmanos, cristãos e judeus participaram do Encontro inter-religioso “Juntos pelo cuidado da nossa casa comum”, organizado no âmbito da Expo 2017. Nessa ocasião, fizeram uma declaração comum acerca da defesa do ambiente.

Durante o evento, o cardeal Peter Turkson, presidente do Dicastério para o Serviço do Desenvolvimento Humano Integral, frisou que todos os cristãos devem agir em relação às alterações que o planeta Terra sofre com a utilização indevida dos seus recursos naturais. É dever de cada instituição religiosa trabalhar com uma educação que proteja e preserve as riquezas e seus recursos naturais, levando os fiéis a refletir a respeito dos valores comuns e da relação do homem com o meio ambiente.

Cristãos do mundo inteiro estão se unindo para a preservação do meio ambiente. Devemos cuidar da nossa Casa comum, em toda sua plenitude, pois ela é um dom de Deus e precisa ser tratada com muito zelo, louvor e respeito.

 CONCLUSÃO

Nesta primeira unidade tivemos uma visão sintetizada de um caminho feito desde as origens da humanidade quando se fala de mundo – o natural –, e crença e fé – o sobrenatural. Do tribal ao urbano atual, do Oriente ao Ocidente, das religiões dos Livros Sagrados aos variados ritos celebrativos, Deus e criação são temas que atravessam séculos.

Da experiência individual à coletiva, da simplicidade presente na religiosidade popular até as imponências solenes da liturgia, o ser humano quer aperfeiçoar a sua fé. Evoluir e crer. Mesmo neste contexto atual que cresce em tecnologia, não se pode excluir a busca incansável de Deus; e agora, mais ainda, devido aos desastres ambientais, ou cremos na Vida em seus aspectos biológicos ou ela não vai subsistir. A fé é para sempre, mas, e a nossa Casa Comum? Vamos começar um caminho de resposta a essa pergunta a partir da segunda unidade.

Diversas tradições religiosas têm a sua visão de mundo. O cristianismo tem sido incansável em apontar que não se pode destruir aquilo que foi criado por Deus. A visibilidade de Deus em suas obras será a perene motivação para a fé: destruir a natureza é tirar Deus da existência.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

ANGLICAN Communion News Service (ACNS). Página inicial. Disponível em: https://www.anglicannews.org/. Acesso em: 11 nov. 2020.

 

BARTOLOLEU de Constantinopla: Ecologia, salvação da humanidade e de toda a Criação. In: Ecclesia, 22 out. 2020. Disponível em: https://ecclesia.org.br/news/?p=34330. Acesso em: 23 out. 2020.

 

BÍBLIA DE JERUSALÉM. São Paulo: Paulus, 2017.

 

CHALLAYE, F. As Grandes Religiões. São Paulo: Edições Ibrasa,1981.

 

DURKHEIM, É. Les Formes Elémentarires de la Vie Religieuse. Paris: Félix Alcan, Paris, 1912. ELIADE, M. O Sagrado e o Profano - A essência das religiões. São Paulo: Martins Fontes, 1992.

FRANCISCO, Papa. Carta Encíclica Laudato Si - Louvado Seja - Sobre O Cuidado Da Casa Comum. São Paulo: Editora Loyola, 2015.

 

FRANKY, C. H. D.; AGUIRRE, A. C. Espiritualidades, Religiões e Ecologia. In: MURAD, A. (org.). Ecoteologia: um mosaico. São Paulo: Paulus, 2016.

 

IGREJA CATÓLICA DEFENDE PRESERVAÇÃO DO PLANETA. Jornal de Angola Online, 2017. Disponível em: http://m.ja.sapo.ao/sociedade/igreja_ catolica_defende_preservacao_do_planeta. Acesso em: 27 out. 2020.

 

MAZZUCO FILHO, V. A contemplação da natureza (O mundo como ícone de Deus). Grande Sinal, Petrópolis, v. 46, n. 2, p. 374-383, 1992.

 

PAULA, S. LOGO: Cuidam do Meio Ambiente. Igreja Metodista – Portal Nacional, 2 jan. 2019. Disponível em: https://www.metodista.org.br/logo-cuidam-do-meio-ambiente. Acesso em: 23 out. 2020.

 

PARÓQUIA DE SÃO JOÃO. Rede Ambiental clama aos anglicanos de todo o mundo para que usem menos plástico. In: Paróquia de São João - Igreja Episcopal Anglicana do Brasil – Diocese Anglicana de São Paulo, 14 mar. 2019. Disponível em: https://psj.org.br/2019/03/14/rede-ambiental-clama-aos-anglicanos-de-todo-o--mundo-para-que-usem-menos-plastico/. Acesso em: 15 dez. 2020.

 

REDE Ambiental clama aos anglicanos de todo o mundo para que usem menos plástico. Paróquia de São João, Igreja Episcopal Anglicana do Brasil – Diocese Anglicana de São Paulo, 14 mar. 2019. Disponível em https://psj.org.br/2019/03/14/rede-ambiental-clama-aos-anglicanos-de-todo-o-mundo-para-que-usem-me-  nos-plastico. Acesso em: 27 out. 2020.

 

REIMER, I. R. Criação e Bíblia. In: BEOZZO, J. O. Ecologia: cuidar da vida e da integridade da criação, CESEP-Paulus, São Paulo, 2006.

Texto originalmente publicado pela USF- FREI VITORIO MAZZUCO FILHO



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ECOTEOLOGIA PARTE 2- UNIDADE 1: INTER-RELAÇÕES E CONTRIBUIÇÕES ECOAMBIENTAIS DAS RELIGIÕES 10 Jan 6:14 AM (3 months ago)

 




2. RELIGIÕES DO ORIENTE E O MEIO-AMBIENTE – O MUNDO COMO ÍCONE DE DEUS

Dando continuidade à nossa reflexão, queremos sintetizar o pensamento da Espiritualidade Oriental Antiga a respeito da natureza e, assim, ver o mundo como um sacramento a ser contemplado. Seria uma ousadia chamar os Padres da Igreja primitiva oriental (não estamos falando de sacerdotes, mas de pais do pensamento primitivo) de ecologistas, pois eles não fazem uma admiração estética da natureza, mas querem mostrar outra realidade mais profunda que inspira; o mundo tem que ser o lugar de constante recordação de Deus e essa afirmação é uma categoria mística essencial. São Basílio Magno dizia que “o criado é impregnado de Beleza”, um imenso ícone da Beleza de Deus, e a natureza é sinal dessa realidade, dessa percepção profunda.

 2.1. A VISÃO OTIMISTA DO MUNDO

A prece na tradição cristã antiga passa também pela contemplação da natureza, não apenas como um sentimento romântico; trata-se de fato de uma paixão. É saber ver. Diz São Basílio: “O Senhor não serve de olhos para contemplar a Beleza da sua Obra, mas nós precisamos de olhos para admirá-la. A beleza é a base da obra criadora”. Para os Padres Gregos a criação é Deus ornando o caos. O cosmo é encontro da ordem, ornamento e harmonia. Deus cria dando forma ao informe. O mundo é um resultado de alguém que olha segundo o modelo de ser, fazer, criar. O Senhor cria, cuida e conduz. Idolatria seria afastar-se de Deus, seria esquecer o mundo em sua multiplicidade, ordem e ritmo. O mundo deve ser a recordação constante desse contato com o divino. As coisas criadas são feitas para evocar isso. Elas são um intercâmbio: humano-natureza-comunhão com o Sagrado. O ser humano se torna pessoa enquanto é relação com a totalidade, e se tem relação com as coisas deve ter também uma íntima relação com Absoluto.

Essa relação humano-mundo e humano-Deus é bastante nutrida pela natureza, porque o mundo representa um espetáculo, um convite do Senhor para colocar o Humano em comunhão com Ele ao ver sua obra. Aqui está o ponto central da teologia e espiritualidade antigas no que se refere ao criado: a sacralidade do mundo, a contemplação religiosa da criação. A natureza é um livro aberto para conhecer Deus e o seu plano de Amor.

O ato criativo de Deus é contínuo, mas o ponto forte é que Deus cria encarnando-se. O Verbo se fez carne e impregnou a paisagem humana da Boa Nova. É preciso ver com alegria o Verbo em todas as coisas, pois Ele completa o plano salvífico global do Pai, por isso é preciso reconhecer e agradecer. O Verbo é o sentido eucarístico do mundo.

Na Espiritualidade Patrística a visão otimista do mundo tem uma justificação soteriológica: a matéria toda é assumida pelo Verbo para operar de um modo completo a nossa salvação: “Não cessarei de levar minha veneração à Matéria através da qual se operou a minha salvação”, escreveu São João Damasceno (MAZZUCO FILHO, 1992, p. 375).

 2.2. A VISÃO SACRAMENTAL DO MUNDO

Os Padres se voltam à Bíblia para sustentar a sua visão otimista sacramental do mundo, e precisamente a Gn 1, 10: “E Deus viu que era bom”. Os exegetas da patrística interpretam esse trecho lembrando que Bom se refere à utilidade das coisas para o ser humano, enquanto o Belo exprime a alegria fecunda e emergente da própria criação. Os Padres citam frequentemente essa expressão bíblica para afirmar a bondade e a beleza do universo. A bondade e a beleza do mundo derivam da sabedoria de Deus, criador de tudo aquilo que é. Todo criado é revestido dessa realidade, afirma São Basílio: “assim como a água impregna de sua vitalidade uma planta, dando-lhe a possibilidade de revestir-se de cores” (apud MAZZUCO FILHO, 1992, p. 376). Os Padres tendem a ver o mundo como uma “teofania” de Deus, uma espécie de sacramento de sua Presença e da sua Beleza. Trata-se de uma verdadeira e própria “cosmologia sacramental”. Todo o mundo é sagrado, porque manifesta o início da encarnação dos Logos Divinos:

O Mundo é uma coisa boa e tudo nele está colocado em ordem com sabedoria e arte. Tudo, portanto, é obra do Verbo vivente e substancial, porque o Verbo é Deus. É dotado de livre vontade porque é vivente, tem o poder de fazer tudo o que escolhe para realizar, e escolhe somente o que é bom e sábio e tudo o que traz o sinal da perfeição. (apud MAZZUCO FILHO, 1992, p. 376)

O grande mestre do “Sacramentalismo cosmológico” é Orígenes. Para ele o mundo é um mistério, isto é, um sacramento. Mistério é Deus mesmo e tudo o que saiu dele através dos Logos. O mundo é feito de sinais significantes que precisam ser lidos para se chegar àquEle que significam. É preciso ter percepção do mistério. “Recordamos que tudo é pleno de mistério”, diz Orígenes, e escreve também: “Tudo o que se alcança, se alcança através do mistério”, pois somente pela graça do Espírito é que nós podemos fazer essa leitura (apud MAZZUCO FILHO, 1992, p. 376).

Máximo, o confessor, diz: “O fogo inefável e prodigioso escondido na essência das coisas como esteve na sarça ardente, é o fogo do Amor Divino e o esplendor fulgurante da sua Beleza dentro de todas as coisas”. Esse fogo Divino é revelado somente pelo Fogo do Espírito, que leva o mundo a ser contemplado como o grande ícone da Beleza de Deus (apud MAZZUCO FILHO, 1992, p. 376).

 2.3. A CONTEMPLAÇÃO DA BELEZA DO MUNDO

O Ser humano, frente à beleza do mundo, não pode permanecer apenas movido por um simples sentimento romântico, mas tem que ser movido das considerações provenientes da fé. É São Basílio que afirma:

"E o Senhor viu que era bom”. A Sagrada Escritura não entende nos dizer que o mar é visto por Deus no seu aspecto de beleza estética… porque o Senhor não se serve dos olhos para admirar a beleza das suas obras. Ele comtempla os seres através da inefável sabedoria. Está certo que não se pode negar o agradável espetáculo que oferece o mar azul quando nele reina uma profunda calma… Mas não é esta a razão pela qual, segundo a Sagrada Escritura, o mar aparece belo e encantador aos olhos de Deus. A beleza deriva do fato que ela é a base da obra criadora de Deus. (apud MAZZUCO FILHO, 1992, p. 378)

A contemplação da natureza é um grande meio que nos ajuda a alimentar-nos da recordação de Deus. Essa é uma das expressões típicas da espiritualidade de São Basílio. Escreve Spidlik:

No Pensamento cósmico de São Basílio, o mundo inteiro na sua multiplicidade, no seu ritmo e na sua maravilhosa ordem, não tem outra finalidade a não ser uma recordação de nossos contatos com Deus. (apud MAZZUCO FILHO, 1992, p. 379)

Para o Bispo de Cesareia, o próprio do ser humano é conservar constantemente a memória do Senhor: “Quero deixar em ti uma profunda admiração da natureza, a fim de que em todo o lugar, contemplando as plantas e flores, sejas preso de uma viva recordação do Criador” (apud MAZZUCO FILHO, 1992, p. 379).

Trata-se literalmente de apaixonar-se frente às maravilhas da natureza, porque o mundo representa um espetáculo frente ao qual tudo o mais empalidece. De fato, argumenta São Basílio, os apaixonados pelo teatro ou pela corrida de cavalos são tomados pela paixão, quanto mais devemos nós permanecer admirados e relembrados de que:

O Senhor, o grande Autor e Artista das maravilhas do mundo, nos convida a assistir ao espetáculo de suas obras. Evitaremos nós, então, de contemplar, hesitaremos nós em escutar os ensinamentos do Espírito? Não devemos contemplar o grande laboratório da criação divina volvendo o nosso olhar sobre a harmonia do universo, sobre o céu, terra e ar? (apud MAZZUCO FILHO, 1992, p. 380)

 A tradição espiritual do Oriente situa, em uma ordem lógica, a contemplação da natureza depois da purificação do coração e antes da contemplação da Trindade. A contemplação da natureza é chamada Theoria fysikè. Trata-se da contemplação religiosa do mundo feita com sentidos espirituais elevados da graça para colher o “Logos” divino em cada ser, ou seja, a bondade de Deus Criador que forjou todas as coisas por meio do seu “Logos”.

Somente assim se supera a exterioridade das coisas e se pode captar e sentir a sua verdadeira linguagem. Trata-se da verdadeira ciência das coisas, nas quais o indivíduo humano purificado e tendo conquistado o coração puro, pode ver dentro das coisas um plano divino e descobrir a Providência Divina feita toda ela de Amor e Sabedoria. Então, a natureza se torna verdadeiramente um livro aberto para conhecer Deus e seu plano de Amor. Máximo, o Confessor, retomando alguns conceitos bíblicos, escreve:

Não conhecemos Deus na sua essência, mas das suas grandes obras e da sua Providência nos seres. Através dos quais, como num espelho, nós compreendemos a sua infinita bondade, sabedoria e potência. (apud MAZZUCO FILHO, 1992, p. 380)

Para São Basílio, tudo é uma concretização da Palavra do Criador. Todo ser deve, portanto, falar, narrar a glória do Senhor. O Espírito a perfecciona; assim como o esplendor pertence ao sol, assim a glória do Senhor pertence ao Espírito. A Beleza é relativa, é enviada à Beleza Suprema, por isso é capaz de suscitar a alma a “exultar no Senhor”, porque ela nos lembra que somente o Senhor possui “uma tal Beleza, uma tal bondade e uma tal sabedoria” (apud MAZZUCO FILHO, 1992, p. 380). A alma exulta porque o Senhor é Grande e Belo. Toda a verdadeira Beleza, portanto, sendo um reflexo da Beleza Divina, não distrai o humano de Deus, não o perturba, porque lhe dá um aspecto feliz e doce que lhe torna sereno e jovial.

A ligação alegre do humano com o cosmo aparece frequentemente em vários autores.

Máximo, o Confessor sintetiza: “Tudo o que foi criado por Deus nas diversas naturezas concorre junto com o humano como numa cozedura, para formar nele uma perfeição única, como uma harmonia formada de diversos sons” (apud MAZZUCO FILHO, 1992, p. 380). Nemésio, bispo de Emesa, em 400 d.C. escrevia que o humano partilha a própria natureza com todas as categorias dos seres e que constitui a coligação ideal com cada um desses seres. O humano é uma comunhão com todas as coisas e participa vitalmente de tudo.

Clemente de Alexandria explicava que o Verbo fez do humano um instrumento composto da harmonia de todo o universo para fazer um hino harmonioso a Deus. Assim, o humano não é um tirano frente à natureza, mas é integrado harmoniosamente nela, nascendo então uma simpatia que liga o humano ao cosmo no amor e na amizade. São Basílio Magno exprime este pensamento de forma geral:

O estar junto ao cosmo, do qual o humano faz parte integrante, mesmo que seja composto de partes desiguais, pelo Criador foi estreitamente unido como uma indissolúvel amizade e uma comunhão harmoniosa que os seres, os mais distantes uns dos outros, são entre eles unidos na mesma simpatia. (apud MAZZUCO FILHO, 1992, p. 381)

Por esse motivo que Máximo, o Confessor, tem uma concepção cósmica do amor. Para ele, graças ao amor se cumpre uma síntese total da humanidade e do mundo em uma idêntica unidade. Não são dois amores, um pelo mundo e outro para Deus, mas dois aspectos do único e indivisível amor com que se ama o mundo e por meio dele: Deus!

Por isso o humano, feito voz das criaturas, cria um Sacerdócio Cósmico para louvar o Senhor por todas as criaturas. Diz o Confessor: “O universo é uma Igreja Cósmica, da qual a nave é o mundo sensível enquanto o coro é o mundo espiritual” (apud MAZZUCO FILHO, 1992, p. 381). O ser humano é convidado a entrar nessa catedral do universo para descobrir, sob a direção do Logos, a verdadeira razão dos seres:

A alma se refugia na contemplação espiritual da natureza como no salão de uma igreja, num asilo de paz… Ela entra junto com o Logos e é conduzida por ele, vosso verdadeiro pontífice. Ali, como uma leitura divina, aprende a conhecer os conteúdos significantes dos seres. (apud MAZZUCO FILHO, 1992, p. 381) 

Aqui o humano se torna o verdadeiro sacerdote do mundo, que oferece a natureza a Deus com o seu próprio coração como sobre o altar, e faz íntimo do seu espírito o “Santos dos Santos”, penetrando até o Grande Silêncio de Deus. O ser humano, mesmo sendo microcosmo, não está em meio ao universo com um sentimento titânico de superioridade no confronto com a natureza; consciente de seu ser efêmero se põe a serviço do cosmos. Inspirado e lírico, diz Máximo, o Confessor:

E nós mesmos, por força do imperioso decurso da nossa natureza presente, agora gerados e dados à luz como todos os outros animais terrestres, depois tornados crianças e enfim invadidos pela juventude até chegarmos às rugas da velhice, como uma flor que dura um breve momento para depois morrer e passar para outra vida, na verdade merecemos chamar-nos um jogo de Deus. (apud MAZZUCO FILHO, 1992, p. 381)

É o sentimento cósmico, a existência considerada como um ato litúrgico, como uma adoração, um culto celebrativo, uma dança sacra e estética.

 2.4. MAIS ALGUMAS IDEIAS SOBRE A CONTEMPLAÇÃO DA

NATUREZA NOS MÍSTICOS ORIENTAIS

A contemplação da natureza não é um fenômeno esotérico reservado a poucos intelectuais de matriz cultural grega. Existem muitos exemplos, no mundo oriental grego e eslavo, de almas culturalmente pobres, mas ricas de interioridades. Conforme Isaac, o Siro, de Nínive, que viveu no século IV, sente-se totalmente solidário com todas as criaturas, a ponto de crer não poder salvar-se a não ser em total comunhão com o todo criado. A pergunta que se põe: o que significa um coração puro? Assim responde:

É um coração que sofre com todas as criaturas. E o que significa um coração que se compadece? É um coração que se inflama de caridade, pela criação inteira, pelo ser humano, pelos pássaros, pelos animais, pelos demônios, por todas as criaturas. Quando pensa nestas criaturas, quando as vê, os seus olhos não podem a não ser encher-se de lágrimas. É assim tão grande e violenta paixão que seu coração se despedaça quando vê o mal e o sofrimento das criaturas mais humildes. Por isso não cessa de rezar entre lágrimas em todos os momentos pelos inimigos da verdade e por todos aqueles que lhe tenham feito algum mal, para que sejam protegidos e perdoados. Ele reza também pelas serpentes, movido de piedade infinita, que despertar no coração de todos aqueles que se assemelham a Deus. (apud MAZZUCO FILHO, 1992, p. 382)

Essas palavras apaixonas de Isaac são uma relação do humano reconciliado com o universo inteiro e por isso considera todas as criaturas suas irmãs e se sente solidário a elas. Isso trouxe um grande influxo no cristianismo oriental, seja grego ou eslavo. No Romance Os Irmãos Karamazov, de Dostoievski, Grigorij, o servo de Ivan Karamazov, aplica-se obstinadamente às pregações contidas no livro Os sermões do nosso padre Isaac, Sírio. O pensamento do santo vem produzido nas palavras do Staretz Zosima: 

Amai toda a criação divina, juntamente com cada grão de areia. Amai toda a pequena relva, todo raio de sol! Amai os animais, amai as plantas, amai, todas as coisas! Se amardes todas as coisas colhei nelas o mistério de Deus. (apud MAZZUCO FILHO, 1992, p. 382)

Temos também Silvano do Monte Athos, falecido em 1938, portanto bem vizinho ao nosso tempo, destacando a sua doutrina e escritos, pelo testemunho de seu discípulo Sofrônio:

A Alma de Staretz exultava de alegria diante da beleza do mundo visível. Sob este aspecto era como um menino: todas as coisas o maravilhavam! (apud MAZZUCO FILHO, 1992, p. 382)

Nos seus ensinamentos, Silvano dá também a razão pela qual o humano deve permanecer estático frente à beleza da natureza:

O humano que perdeu a graça não sabe mais perceber a beleza do mundo e nada mais o encanta; e não lhe toca mais nem a inexprimível beleza da criação de Deus. Eu sei quando a graça do Senhor está com o humano, tudo o que existe dá à sua alma um inconcebível maravilhamento, e contemplando a beleza visível a sua alma dá conta da incrível presença de Deus em todas as coisas. (apud MAZZUCO FILHO, 1992, p. 382)

Enquanto observava as nuvens moverem-se no céu da Grécia, disse:

Que beleza criou Deus em sua glória, para o bem do povo, para que o povo glorifique com alegria seu criador […] Ó Rainha dos céus! Fazei com que o povo seja digno de ver a glória do seu Senhor! (apud MAZZUCO FILHO, 1992, p. 382).

Para um companheiro de estrada, que com um bastão rompia as folhas dos arbustos à beira do caminho, dizia:

A folha era verde sobre a arvore e tu a estraçalhaste sem necessidade. É verdade que não é um pecado, mas o coração que aprendeu a amar se reconcilia com todas as criaturas, sobretudo com as mais pequeninas (apud MAZZUCO FILHO, 1992, p. 382).

A sua piedade para com os animais era comovente. Diz seu discípulo:

Lendo os escritos do Staretz, é muito bom pararmos sobre seus pensamentos e seus sentimentos para com os animais. Não podemos experimentar a paixão que ele provava por cada criatura, e isto podemos sentir relendo o passo que dá ao deplorar a sua crueldade por ter matado uma mosca, ou por ter jogado água quente num morcego que se instalou no seu depósito; podemos compreender a sua compaixão por cada criatura que sofre. (apud MAZZUCO FILHO, 1992, p. 382).

Naturalmente, nesses casos não se trata de um amor pelos animais que substituiu o amor pela humanidade, como muitas vezes pode acontecer. Ele deplora o amor exagerado pelos animais que o amor pelos humanos e por Deus, último termo de todo amor pelas criaturas. O amor pelas criaturas deve nascer da graça, “A sua compaixão pelas criaturas não era um fenômeno patológico, mas sua expressão de uma grandeza de alma sobrenatural e de sua bondade derivada da graça” (apud MAZZUCO FILHO, 1992, p. 382).

Temos também São Serafim de Sarov (1759-1833). Ele é conhecido como o “São Francisco do mundo russo”. Esse santo, que viveu grande parte de sua vida em contemplação dentro das impressionantes florestas russas, conseguia transfigurar o mundo em uma contínua oferenda para o Criador. Pela oração contínua aprendeu a conhecer a linguagem da criação, a escutar o louvor das criaturas e a compreender como é possível dialogar com elas. Uma testemunha ocular relata:

À meia noite, ursos e lobos, lebres e raposas circulavam o êremo de Serafim, junto a insetos e répteis de todos os tipos. Terminada a prece… O asceta sai da cela e começava a matar-lhe a fome dividindo com eles o seu pão seco. Um grande urso gozava de particular amizade com o santo homem… O que tocava a todos era a alegria que o Pai Serafim irradiava naquela ocasião. Sorridente, mandava o urso pegar coisa, e este retornava pela rampa trazendo um favo de mel que o anacoreta oferecia gentilmente a seus hóspedes. Mais tarde representações mais comuns de Serafim serão aquelas que o apresentavam sentado à sombra de um pinheiro enquanto dá um pedaço de pão a um urso. (apud MAZZUCO FILHO, 1992, p. 382)


Mesmo após a revolução russa, a caça ao urso é proibida na floresta em que viveu São Serafim, o “semelhantíssimo a Cristo”, como era chamado na tradição póstuma. Concluindo esta parte, aprendemos com os místicos orientais o amor pela natureza, uma natureza que precisa ser percebida com a alma. A alma é grande porque Deus a fez participar dessa beleza. Tudo é grande e belo, mas deve ser integrado no humano para que ele seja a Voz e a Consciência das criaturas.

Aprendemos com eles a Fraternidade Universal, que não exclui o mundo das coisas: a Fraternidade Universal deve respirar com o pulmão do universo! Que possamos rezar como Padres Orientais: “Graças, Senhor, porque somos também a concretização do seu Logos”. Fazemos parte da sinfonia de Deus, por isso não podemos desafinar, conquistemos a nossa harmonia! O mundo precisa demais de quem diz: graças ao Criador!

Diante da imensidão das obras não podemos nos calar. Que nossa presença na natureza seja de agradecimento, reconhecimento, reverência e de restituição: vamos dar a Deus o que lhe pertence!

 3. RELIGIÕES MONOTEÍSTAS ABRAÂMICAS E A CRIAÇÃO COMO CONCEITO TEOLÓGICO

A beleza da criação nas religiões monoteístas abraâmicas – Judaísmo, Cristianismo e Islamismo – é a revelação de que todo ser criado é um espelho do Deus Criador. Ele cria o mundo e vai aperfeiçoando, mas conta com o ser humano para dar continuidade a sua obra para assim levar ao acabamento a perfeição do Criador. A força do conceito de criação passa de geração em geração e faz surgir os efeitos que a formação no mundo da crença causa nas concepções de cada indivíduo: o ser humano não surgiu do nada; o sentido da sua vida é que vem de um Criador que dá origem à vida, é uma questão de fé. A vida só tem sentido pelo fato de termos sido criados por um Deus, e Ele preenche toda a realidade.


O mundo foi criado a partir de um propósito do Criador para ser um lugar de acolhida da energia e da luz que vem do divino. “E Deus disse: Faça-se a luz! E a luz se fez. Deus viu que a luz era boa” (Gn 1,3). Deus prepara as criaturas e vai dispor o seu povo para que através, de sua luz, ilumine o mundo inteiro. Deus quis ter uma morada física sobre a Terra; faz parte do seu projeto ser encontrado também no mundo físico. O mundo físico não é contrário ao espírito, mas é o lugar da revelação da bondade infinita do Criador, que conta com o ser humano para preparar a sua morada neste mundo, como diz o Salmo 115,16: “Os céus são os céus do Senhor, mas a terra ele deu aos filhos dos homens”. Deus desce ao plano terreno para que o ser humano suba espiritualmente e seja uma ponte de ligação entre a terra e o infinito.

 Há uma mensagem fundamental a ser passada: o mundo é uma criação do Deus Yahveh e a partir das ordenanças (Torá) deste Deus a vida alcança o seu verdadeiro sentido […] É importante destacar o lugar adequado dos humanos dentro de toda a casa da criação, levando a sério que o relato não culmina na criação dos seres humanos, mas no shabbat da criação e de Deus (Gn 2,1-3). As atribuições de domínio dos humanos na criação (Gn 1,28) devem ser relativizadas em favor de uma leitura que destaca a tarefa de trabalho e cuidado na criação (Gn 2,15), bem como a relação intrínseca entre o ser humano (adam) e a mãe terra (adamah). (REIMER, 2006, p. 119)

 A Sagrada Escritura é uma referência quanto à relação com a questão ambiental, pois faz muitas referências à terra, ao mundo e a todos os seres criados. As religiões do Livro mostram a criação como a ordem no caos. O ser humano não é dono e dominador da natureza, mas sim aquele que administra uma obra que vem de  Alguém maior do que ele. A criação é um organismo vivente que interage com o ser humano, dá a ele sustente e abrigo. No dilúvio é preciso salvar e cuidar das espécies para que a vida subsista. No Êxodo, as pragas, o mar, as rochas, o deserto, a água, fogo e nuvem fazem parte da caminhada do povo como guia e direção. A montanha é o lugar da lei, pactos e alianças e de grandes ensinamentos para que a vida não seja destruída.

Os pobres de Israel são pobres porque não herdam a terra. O não herdar a terra em Israel os faz pobres e vulneráveis. A terra é, então, sinal sensível do dom de Deus, da realização de suas promessas, e quem não a tem, nos códigos legais, torna-se destinatário da atenção de Deus e, portanto, do homem justo. Mas também a terra deve descansar. O jubileu é também para ela. É imperioso permitir que ela se recomponha, regenere-se. Não se trata de uma exploração indiscriminada, mas de uma relação justa e equilibrada. (FRANKY; AGUIRRE, 2016, p. 127)

O Islamismo traz em seus grandes ensinamentos a verdade que Deus criou seres humanos para cuidarem da sua obra. A criação não pertence aos seres humanos, que são apenas os guardiães: “O mundo é verde e bonito e Alá te nomeou seu tutor”, eis as palavras e Maomé. No que se refere à criação:

O conceito central do Islamismo é a unidade. Alá é a unidade e sua unidade reflete-se na unidade da humanidade e da natureza. Portanto, devemos manter a integridade da Terra, sua flora, sua fauna em todo o meio ambiente. Nossa responsabilidade é manter o equilíbrio e a harmonia na criação de Deus. Eles foram desenvolvidos para orientar uma concepção e um estilo de vida, a declaração de fé islâmica e a ecologia. O Islamismo ensina que algum dia seremos julgados por Deus pela forma como temos cumprido com nossas responsabilidades, seguindo as orientações dessa religião. Será que fomos bons administradores, será que mantivemos a natureza em harmonia? No Alcorão diz-se que Alá nos convida a nos deliciar dos frutos da terra, porque Alá não ama os esbanjadores. Todos os princípios traduziram-se em instruções e práticas a respeito de como viver, princípios que foram consagrados nas leis do islamismo. Por exemplo, a lei islâmica protege os animais contra a crueldade, conserva os bosques e limita o crescimento das cidades. (FRANKY; AGUIRRE, 2016, p. 128-129)

 O Cristianismo insiste na responsabilidade que a humanidade tem em cuidar da criação, mas também aponta a falta de cuidado. Há grandes ensinamentos à luz da crise ambiental, e o Cristianismo coloca em seus documentos apelos para mudança no estilo de vida. Natureza e criação fazem parte do Credo: “Creio em Deus Pai, todo poderoso, criador do céu e da terra”, portanto, faz parte da fé. Causar dano à criação deveria levar ao arrependimento capaz de pedir perdão, para chegar à conversão e amor a todas a criaturas. O cristianismo elabora uma nova espiritualidade:

Como em outros momentos da história humana, há um movimento de retorno às fontes da espiritualidade, que dessa vez ocorre em meio às tensões próprias da época e das novas fronteiras interculturais, inter-religiosas e interdisciplinares, que vão talhando a fisionomia da atual conjuntura planetária. Nesse cenário, constata-se que a espiritualidade não é passiva nem imutável. A espiritualidade move-se, caminha, indaga, explora, indica. É a própria vida que aspira sempre transcender, realizar-se, plenificar-se. A crise ecológica interpela as diversas maneiras de conceber-se a espiritualidade e gera uma nova espiritualidade. Existe uma aposta por uma espiritualidade que responda ao que acontece no mundo de hoje. (FRANKY; AGUIRRE, 2016, p. 133)

 

 Texto originalmente publicado pela USF- FREI VITORIO MAZZUCO FILHO



 

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ECOTEOLOGIA PARTE 1- UNIDADE 1: INTER-RELAÇÕES E CONTRIBUIÇÕES ECOAMBIENTAIS DAS RELIGIÕES 11 Nov 2024 11:10 AM (5 months ago)

 



INTRODUÇÃO:

A dimensão religiosa da existência nos leva ao centro da existência sem perder o seu eixo fundamental e necessário: na vida tudo está ligado, religado, interligado e numa conexão profunda com o Ser original e originante que faz a vida acontecer em sua plenitude. Tudo o que se move é movido por uma força maior. Todas as religiões procuram explicar o fenômeno das intervenções de Deus na história, e de um modo especial veem a criação como o espelho mais transparente que revela o amor e o bem. Deus e o seu grande amor por todo o criado é a manifestação mais evidente de que somos cuidados por um Ser Superior que se dá através de suas obras.

No primeiro item desta unidade vamos mostrar, sob o olhar da transcendência, o que a espiritualidade, a religião e a teologia espiritual podem fundamentar quanto a relação que existe entre a experiência religiosa e a questão ambiental. Desde as religiões mais primitivas com a sua expressiva riqueza de ritos e cultos, a prioridade sempre foi destacar elementos da natureza para fazer a relação entre céu e terra. Em tudo uma manifestação do sagrado em momentos, elementos, tempo e espaço para o encontro com a divindade.

No segundo item a cultura religiosa do oriente e o meio ambiente. A natureza não é vista apenas na perspectiva da matéria, mas sob o olhar contemplativo. Contemplar é fazer de cada lugar um templo, estar junto com o espaço sagrado; por isso o mundo é visto como um ícone de Deus. Há uma alegre visão de mundo porque a matéria é sagrada, e a natureza é um livro aberto para conhecer o modo como Deus ama.

No terceiro item queremos mostrar que a criação em si comporta um conceito teológico: o sentido da vida vem do Criador que dá origem a vida e isto é uma questão que está na experiência de fé. O Criador quis ter uma morada física sobre a terra, faz parte de seu projeto ser encontrado no mundo de todas as coisas.

No item quarto destacamos o compromisso das igrejas cristãs com a questão ambiental. Não basta apenas celebrar, é preciso cuidar. É preciso tratar, discutir e denunciar de um modo profético a degradação ambiental, mudar o estilo de vida, de produção e de consumo. A maior parte dos habitantes da terra declara-se pertencente a uma tradição religiosa, mas do que adianta isso se os que creem e as religiões não se unirem para o cuidado da natureza?

1. INTER-RELAÇÕES E CONTRIBUIÇÕES ECOAMBIENTAIS DAS RELIGIÕES

Religião, evolução e espiritualidade estão presentes na criação e têm grande importância para elucidar o sentido da vida e a verdade de todos os seres. Desde as experiências mais primitivas e tribais do ser humano, o natural e o sobrenatural se encontram na beleza dos ritos. Do Oriente ao Ocidente, a questão ambiental não passa despercebida nos caminhos de crença e fé. O mundo bíblico enriquece o conceito teológico da criação como obra proveniente do Ser que nos faz ser. Das experiências religiosas mais ancestrais até o cristianismo, o cuidado pela natureza e a questão socioambiental apareceram como conscientização e práticas concretas. É do que vamos tratar nesta unidade.

1.1. RELIGIÕES ANCESTRAIS E A NATUREZA

Na origem primitiva da experiência religiosa, nos cultos e celebrações individuais e coletivas, os elementos da natureza, sobretudo terra, fogo, água e ar, estiveram presentes. Em  oferendas, cantos e danças os fenômenos naturais, como lua, chuva, raios e trovões são fatos ritualizados. Nas tribos mais primitivas, nos mitos gregos, nos impérios fenício, egípcio e romano, os deuses são a personificação de uma força da natureza. Do encontro entre o natural e a verdade dos preceitos sagrados e morais nascem conceitos, por exemplo: o sol significou a epifania luminosa dos deuses; a lua, a beleza envolvente das deusas.

SAIBA MAIS:

Terra: é o grande símbolo da matéria receptora das forças fecundantes, que de um modo passivo fica à espera da modelagem e das sementes. Espessa, maciça, compacta e de diversas formas e cores é a massa pronta para ser trabalhada e transformada. Como diz Francisco de Assis: “nossa Irmã e Mãe que nos sustenta e governa”. É a gruta e a caverna, a proteção, o abrigo, o subterrâneo que guarda tesouros. É a montanha com força e estabilidade, lugar do encontro com a luz e o céu. É o barro e o pó de onde saímos e para onde voltamos ao seu ventre de Mãe, origem do poder criador.

Fogo: é o elemento da transmutação alquímica, a purificação, fonte da vida, a energia que se libera do interior da matéria. É o sol fonte de toda luminosidade. Do fogo e suas cinzas renasce a vida, muito mais pura e forte, mais bela e perfeita. No fogo se prova o ouro e se prepara o alimento que sustenta os seres humanos. É o sinal da festa e farol dos caminhos. Como diz Francisco de Assis: “belo, jucundo, robusto e forte”.

Água: o grande elemento da mistura, da fusão, da dissolução das partes. É pura receptividade e fluição. Contorna todos os obstáculos à procura do caminho mais perfeito. É ablução e purificação Água do batismo, do dilúvio, da renovação, do sangue, do pacto, a matriz da vida.  Como diz Francisco de Assis: “mui útil, humilde, preciosa e casta”.

Ar: é elemento da liberdade, é a ligeireza, o voo, a elevação, o fim da rotina, o sopro do envio, a flexibilidade, o hálito vital, o respiro nas narinas do ser humano, o movimento que faz o organismo vivente. É o símbolo da Palavra, do Verbo e do ato Criador. Diz Francisco de Assis: “o Irmão vento e o ar, que às suas criaturas dás sustento”.

Uma crença vinda dos simples nativos e camponeses os faz sentirem pequenos e frágeis criaturas diante da grandiosidade do divino. Na Bíblia temos: “Abraão prosseguiu e disse: ‘Sou bem atrevido em falar ao meu Senhor, eu que sou pó e cinza’” (Gn 18,27).

Há uma presença forte do sagrado na totalidade da existência como uma revelação por meio dos elementos da natureza. As religiões ancestrais são plenas de hierofanias; o divino se apresenta em árvores, pedras, rios e fumaça. Objetos materiais que pertencem à ordem do nosso mundo mostram algo que está além do nosso mundo. O natural e o sobrenatural se encontram em um envolvente espaço religioso.

“Uma pedra sagrada nem por isso é menos uma pedra; aparentemente (para sermos mais exatos, de um ponto de vista profano) nada a distingue de todas as demais pedras. Para aqueles a cujos olhos uma pedra se revela sagrada, sua realidade imediata transmuda-se numa realidade sobrenatural. Em outras palavras, para aqueles que têm uma experiência religiosa, toda natureza é suscetível de revelar-se como sacralidade cósmica. O Cosmos, na sua totalidade, pode tornar-se uma hierofania.” (ELIADE, 1992, p. 16)

GLOSSÁRIO

Hierofania: manifestação do sagrado em momentos, tempos e espaços em que se pode perceber as revelações da divindade.

 Religião e evolução são essenciais para elucidar os sentidos presentes em todos os detalhes da vida. Na origem primitiva dos cultos e celebrações individuais e coletivas, os elementos da natureza frequentemente estiveram presentes. Os fenômenos naturais são fatos ritualizados. Das tribos primitivas aos mitos gregos os deuses são personificação das forças da natureza; um encontro entre o natural e sua verdade e os preceitos morais que daí vão nascendo. Profano e sagrado se encontram para habitar na terra dos humanos, e as divindades são as guardiãs da terra. Para entrar no natural é preciso passar pelo portal sagrado.

Todo rito é um rito de passagem. Templos, igrejas e espaços transcendem as obras presentes na criação e usam sinais: flores, ramos, fogo, madeira, pedra, azeite, vinho, frutos, água e tantos outros elementos da natureza para mostrar que há um encontro entre o céu e a terra, o espírito e a matéria.

Todo espaço sagrado implica uma hierofania, uma irrupção do sagrado que tem como resultado destacar um território do meio cósmico que o envolve e torná-lo qualitativamente diferente. Quando em Haran, Jacó viu em sonhos a escada que tocava os céus e pela qual os anjos subiam e desciam, e ouviu o Senhor, que dizia, no cimo: “Eu sou o Eterno, o Deus de Abraão! ”, acordou tomado de temor e gritou: “Quão terrível é este lugar! Em verdade é aqui a casa de Deus: é aqui a Porta dos Céus! ”. Agarrou a pedra que fizera cabeceira, erigiu-a em monumento e verteu azeite sobre ela. A este lugar chamou Betel, que quer dizer “Casa de Deus” (Gn 28, 12-19). O simbolismo implícito na expressão “Porta dos Céus” é rico e complexo: a teofania consagra um lugar pelo próprio fato de torná-lo aberto para o alto, ou seja, comunicante com o céu, ponto paradoxal de passagem de um modo de ser a outro. Não tardaremos a encontrar exemplos ainda mais precisos: santuários que são “Porta dos Deuses” e, portanto, lugares de passagem entre o céu e a terra. ” (ELIADE, 1992, p. 25-26)

GLOSSÁRIO

Teofania: manifestação de Deus em um lugar determinado por meio da natureza, em objetos e em pessoas. É o modo pelo qual se crê na visibilidade de Deus em tempo, circunstâncias e sinais.

As religiões ancestrais inauguraram todos os lugares como espaço sagrado reveladores de um Ser Superior por meio de sinais. As diversas formas e figuras que convocam ao sagrado vêm da natureza como uma seta indicativa de lugar, espaço e tempo que deem segurança e uma orientação necessária. O natural sempre foi um ponto de apoio para o sobrenatural. A realidade dialoga com a inspiração. O lugar passa a ter uma atmosfera sagrada.

A mais antiga experiência religiosa vem do Totemismo. O que é o Totem? É o sinal que reúne a ancestralidade, a genealogia, o clã, as tradições que vão passando de geração em geração com costumes, ritos e símbolos que recolhem seres e coisas sagradas. Vem preferencialmente das tribos indígenas que mostram as crenças totêmicas. Dos indígenas da América do Norte às tribos australianas, na América Latina e na África, que procuram celebrar o espírito bom e livrar-se do espírito do mal. Cada tribo ou grupo familiar fazia do totem o seu brasão de história e fé, que dá ao grupo uma identidade, como que um selo de caráter religioso e cultural. Normalmente, a representação totêmica é cosmológica e abraça o universo conhecido e o mistério do universo não conhecido. São forças materiais e imateriais que se unem. Atinge o indivíduo e os membros do clã.

É a este princípio comum que se dirige, na realidade, o culto. Em outros termos, o Totemismo é a religião, não de tais animais, ou de tais homens, ou de tais imagens, mas de uma espécie de força anônima e impessoal, que se encontra em cada um dos seres, sem se confundir, no entanto, com qualquer deles. Ninguém a possui inteiramente e todos dela participam. Ela é tal forma independente dos súditos particulares em que se encarna que tanto os precede como lhes sobrevive. Os indivíduos morrem; as gerações passam e são substituídas por outras; mas esta força continua sempre atual, viva e semelhante a si mesma. Anima as gerações de hoje como animava as de ontem, como animará as de amanhã. Tomando-se a palavra num sentido bem lato, poder-se-ia dizer ser ela o deus que cada totêmico adora. Apenas é um deus impessoal, sem nome, sem história, imanente no mundo, difuso numa multidão inumerável de coisas presentes na natureza. (DURKHEIM, 1912, p. 269-270)

GLOSSÁRIO

Totem e Totemismo: o Totem é o objeto cultuado como símbolo sagrado de ancestralidade. Significa a herança de força e proteção. Pode ser uma coluna, uma planta ou um animal. O Totemismo é a religião derivada do Totem. Ela faz o encontro, por meio de objetos, entre o ser humano e a natureza, unindo-os pelo sobrenatural.

No totemismo há o conceito do que é proibido; por exemplo, matar certos animais Considerados sagrados, comer em dias consagrados e tocar objetos que são considerados cultuais, antecipando o conceito de sagrado e profano.

Das tribos africanas temos o Animismo, que celebra os espíritos presentes na natureza e os trazem presentes no espírito do ser humano. O animismo revela as forças mágicas presentes na natureza e ritualizadas por meio de objetos de piedade. É um mundo encantado com os fenômenos da natureza e que são atribuídos à atuação divina. As forças da natureza conduzem a uma abstração para uma atuação prática. O animismo criou o Fetichismo, coisas materiais dotadas de força sobrenatural que têm sua própria magia. Trouxe também o Politeísmo, que os gregos já conheciam muito bem: trata-se da intervenção dos deuses em todos os detalhes da vida. Alma e natureza se encontram e precisam celebrar esse encontro em cerimônias religiosas.

Determinados objetos são dotados de poder mágico-afastam a desgraça ou produzem a felicidade: amuletos, feitiços, talismãs. Quase todos adornos com que se compraz a garridice, tanto masculina como a feminina, só se transformam em enfeites após haverem, primeiro[, ] servido de amuletos […]. O Animismo forneceu aos seres humanos uma primeira hipótese que permite estudar o mundo; encorajou os primitivos de outrora, encoraja os primitivos de hoje na tentativa de agir sobre a natureza, que eles acreditam povoada de espíritos análogos aos seus. Pode-se dizer, com Augusto Comte, que ele conseguiu “tirar o espírito humano de seu torpor animal. (CHALLAYE, 1981, p. 37-41)

GLOSSÁRIO

Fetiche e Fetichismo: é adorar e dar valor de modo transcendente e mágico a seres e objetos. Fetiche é o objeto usado para dar satisfação, realização e prazer de uma lembrança de algo muito forte. Fetichismo é o culto organizado de objetos que assumem o lugar de seres espirituais e possuem poder e magia. Animismo: doutrina que mostra que não existe separação entre mundo físico e mundo espiritual, e que animais, plantas, pedras e locais são revestidos de espírito.

No antigo Egito temos a força religiosa de um povo manifestada em seus monumentos, hieróglifos e sarcófagos que descrevem o divino em forma animal e que posteriormente vão adotando formas humanas. O mistério da natureza se une ao mistério humano. Na Índia a religião é totalmente baseada em cultos primitivos, segundo os quais a presença sagrada está nos deuses da natureza. Há o deus da chuva, trovão, tempestade, do céu, das estrelas, que criam uma ordem universal para mostrar a fluência da natureza. Há a força feminina das divindades, evocando a força da mãe terra.

Como diz o Hino número 121 do Livro X, do Rig Veda:

Ele que dá a vida, que dá a força, cuja sombra é a imortalidade, cuja sombra é a morte, quem é este deus que veneramos pelos sacrifícios? Ele por quem existem as montanhas de neve e o mar com o riacho longínquo, ele que tem por braços as regiões do céu… quem é esse Deus que veneramos pelos sacrifícios? Ele que, por seu poderio, passeava os olhos por cima das águas que produzem o poder e engendram o Fogo do Sacrifício, ele que é o único deus acima de todos os deuses… quem é esse deus que veneramos pelos sacrifícios? (CHALLAYE, 1981, p. 35)

O sacrifício, entendido como um fazer sagrado, é o modo como se mantém a força religiosa no mundo, que é feito de imagens muito sensíveis para mostrar a origem suprema de toda realidade. O mundo exterior não é apenas matéria, mas tem uma essência; todos os seres – e sobretudo o corpo humano – precisam ser tomados por um sopro vital.

A minha alma (atman) é no fundo do meu coração, menor que um grão de cevada, menor que a semente de mostarda, menor que um grão de arroz. E o atman é minha alma no fundo do meu coração, mais vasto que a terra, mais vasto que a atmosfera, mais vasto que os céus e todo este mundo infinito. E o atman realmente que é preciso contemplar, que é preciso ouvir, que é preciso compreender, que é preciso meditar; pois verdadeiramente, aquele que ouviu, que compreendeu, que contemplou, que meditou, conhece o universo inteiro. O que está no fundo do homem e o que existe no sol são uma única e mesma coisa. (CHALLAYE, 1981, p. 67)

Muito presente na Índia e na China, o Budismo apresenta uma regra muito importante: não se pode fazer nenhum mal a qualquer ser vivo. O Confucionismo e o Taoísmo, que são religiões da China, o Xintoísmo, do Japão, que contribuição têm quanto à questão da natureza? Todos falam do espírito que estão misturados entre todos os seres existentes e orientam a vida dos vivos. Falam também do espírito da terra, das montanhas, das florestas e das águas. Os cultos ancestrais nessas tradições têm uma conotação materna baseados na Terra Mãe que exerce a sua função de fecundação. A primavera é época dos noivados.

Sem a intervenção de um deus pessoal, a ação dos espíritos e a do céu acordam em recompensar o bem e punir o mal, notadamente por meio de fenômenos da natureza, favoráveis ou desfavoráveis. A abundância dos produtos naturais da terra prova que o soberano cumpriu bem os ritos; os poetas celebram-no com justiça. Ao contrário, a desordem da natureza reflete a desordem do Estado. As leis da natureza confundem-se assim com as leis morais e sociais. É um antropocentrismo ritualista e lírico. (CHALLAYE, 1981, p. 97)

A ordem do mundo é o princípio eterno do qual temos a origem de todas as coisas. Essas religiões todas têm o culto aos mortos. Eles têm influência nos fenômenos naturais. Os mortos povoam a face da terra; são responsáveis pela fecundidade do plantio, interferem no ciclo das estações, estão nas catástrofes, nos tempos de guerra e fome. São fortes no bem e no mal; são bondosos quando os vivos celebram sua memória e muito maus quando são esquecidos; neles está a recompensa e a punição. Os espíritos ancestrais animam a natureza, a beleza do céu, as árvores e as pedras. Por isso, sobre os túmulos se depositam comida e bebida como sinal de reverência e reconhecimento.

Nas religiões do Irã, o Masdeísmo, o Mitraísmo e o Maniqueísmo, o touro, a vaca, o cachorro, o cavalo, a serpente e certos vegetais são sagrados. Deus é o criador majestoso, altíssimo, bom e belo. O Deus da luz, da pureza e da verdade de onde vem o dom da vida. A terra é a muralha que protege o céu. É preciso cuidar e criar de um modo inteligente o gado e as pastagens, e todo agricultor deve ser um bom servidor da vida. Nessas tradições o fogo é o grande símbolo do ser supremo, o culto principal e primordial, o deus da luz.

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Texto originalmente publicado pela USF- FREI VITORIO MAZZUCO FILHO










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DE JUBILEU EM JUBILEUS – 9 14 May 2024 11:05 AM (11 months ago)

No ano de 2023 celebramos o Jubileu da Regra Bulada (1223) que como fonte de Espiritualidade é união de vidas segundo o Espírito, é proposta da busca de ser melhor e mais evoluído a partir do momento que se abraça uma forma de vida, um caminho de interioridade e fraternidade, a pedra angular da reconstrução. Espiritualidade é caminho feito com passos de fé acreditando em algo grandioso.  Uma Regra Franciscana porque, neste caminho se refaz os passos e a inspiração de um convertido. A conversão de Francisco não é um ardor momentâneo, mas um modo de ser que atravessa oito séculos. Os que seguem estes passos são perseguidos pela Graça; e ajudados pela intuição franciscana, se organizam para construir uma nova humanidade.

No ano de 2023 celebramos o Presépio de Greccio (1223). Para Francisco de Assis o presépio resplandece a divindade e a humanidade de Jesus Cristo numa bela teofania, a mais bela de todas, e por isso precisa de homenagem! Fazer presépio é honrar de um modo luminoso a luminosa presença de Senhor em nossa história. Presépio não é ajuntamento de imagens, mas comunhão com Deus por meio da percepção e da gratidão. Se a Palavra se fez criatura, as criaturas se reúnem para proclamar a Palavra que veio ser como nós: pessoa! O presépio é o estar junto, estar em casa, ver, contemplar, viver com e viver por uma causa. Um Reino que abraça o universo a partir de uma manjedoura, um trono simples para um Menino Rei humanizado. Nele a gloria é visível. “Quem me vê, vê o Pai” (Jo 14,7).

Neste ano de 2024 celebramos os Estigmas (1224): “Homem novo, Francisco tornou-se famoso por novo e estupendo milagre: por singular privilégio, jamais concedido nos séculos anteriores, apareceu assinalado, ou ornado, com os sagrados estigmas, configurando o seu corpo mortal ao corpo do Crucificado. Tudo o que a humana língua possa dele falar sempre estará aquém do louvor de que é digno. Inútil procurar a razão, porque é maravilhoso, nem se trata de buscar um exemplo, pois é único. Todo o empenho do homem de Deus, quer em público, quer em particular, dirigia-se para a Cruz do Senhor. Desde o primeiro instante em que começara a servir sob o Crucificado, diversos mistérios da Cruz resplandeceram em torno dele” (3Cel 2,1).

Quem centra a sua vida numa determinada busca, numa focada paixão, num visível enamoramento, percebe claramente que o sentido deste Amor vai aparecendo nas nuances da vida. O que amamos nos surpreende em evidentes sinais como uma reveladora novidade.  Francisco de Assis foi estigmatizado, e os estigmas são como as marcas do Crucificado que São Paulo dizia trazer consigo. Um humano renovado se molda sobre um caminho de grandes desafios e porque não, de sofrimento? O Amor deixa marcas, e amar tem a sua glória e cruz, tem a sua flor e dor. Toda renovação vai à fonte inicial da vida que é parida em dor. E podemos perguntar: o que tem de humanidade nova nisto, o que tem de novidade? A novidade presente em sofrer por amor é muito raro na literatura espiritual antiga. Vamos encontrar no antigo Império Romano, a presença do termo novus ou novitas, no discurso de Cícero, orador romano, na sua peça de oratória, chamada “Pro Murena”, onde ele defende que não devemos ignorar as marcas deixadas pelo sofrimento nos caminhos da consolação. Para Cícero, as marcas da dor são glórias da luta. Cícero escreve isto para Murena, um senador romano, dizendo para ele que “as virtudes de um senador são mais importantes que o seu nascimento”. As marcas deixadas pelo Amor não são sofrimento pelo sofrimento, mas reconhecimento.

Em 2025, vamos celebrar O Cântico das Criaturas (1225), um hino sensível e poético, como um salmo feito para exaltar elementos fundamentais da vida e une o mundo exterior e interior. Uma escada mística com a qual se faz um caminho entre céu e terra, espírito e matéria, humano e divino. São Francisco de Assis nos faz degustar, com olhar contemplativo, conhecimento e vivência dos elementos da natureza e decifra através da terra, fogo, água e ar, sol, lua, estrelas, vento, nuvens, frutos, flores e ervas, o livro da vida em sua mais bela expressão e reconcilia os conflitos com perdão e paz na tribulação. A morte é bem-vinda como irmã se a vida é vivida num serviço de grande humildade. Ele mostra uma estrada para chegar a Deus altíssimo e bom Senhor: através de suas obras.

O Cântico das Criaturas é espelho das condições de vida. Nascer, morrer, reviver, estar em harmonia; semear paz e perdão em meio a tensões que nos cercam. Um espelho de sentidos que se comunica através do simbólico, do visível, do belo e do bom. Ele nos devolve o paraíso que perdido que vamos destruindo. O corpo da existência é visto com os olhos do espírito para se ter uma reverente imagem do mundo. Uma das características do Cântico é o feminino e o masculino como sinais de unidade e totalidade psíquica do humano e sua forte identidade. São Francisco de Assis canta o Irmão Sol, a Irmã Lua, o Irmão fogo e a Irmã água, a senhora Mãe e Irmã terra. A comunhão com o céu e a comunhão fraterna com os seres da terra e tudo integra.

Em 2026, teremos a Morte de Francisco como celebração, vamos comemorar os 800 anos de seu Transitus, a sua passagem para a eternidade. Ele mesmo canta em seu famoso hino: “Louvado sejas, meu Senhor, por nossa Irmã, a morte corporal”.  Francisco é um ser humano reconciliado com a vida e integra a morte na totalidade da existência, morrer é o ciclo inevitável da vida. A morte deixa de ser um momento para ser um processo, ela não é o oposto da vida, mas faz parte essencial da vida. A morte tira o vínculo físico, mas jamais o vínculo afetivo. Como Jó, Francisco saciado de viver, morreu. Seu amor o eterniza no tempo e ele se torna um benefício existencial.

Estes anos onde comemoramos todos estes jubileus recontam a história de Francisco e resgatam os grandes valores franciscano como uma nova Legenda moderna de um medieval sempre atual, que empurra a nossa história, a nossa vida, a nossa espiritualidade para um futuro absoluto, um amanhã pleno de luz. Em louvor de Cristo. Amém!

FREI VITORIO MAZZUCO FILHO

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Imagem: Musei Vaticani

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DE JUBILEU EM JUBILEUS – 8 21 Feb 2024 1:31 AM (last year)


 São oito séculos tendo sempre na vida Guias Espirituais como método. Enfim, já tivemos, e ainda temos, uma espiritualidade que vem da oração constante, afetiva e menos especulativa, livre e espontânea e aberta aos dons místicos. Talvez hoje tenhamos a preguiça encorajada pelos muitos subsídios, e uma mística equivocada porque perdeu a originalidade que vem do coração; tem-se a impressão que há um orgulho de ser uma pessoa espiritual e não a austeridade heroica da abnegação. Amor próprio pode sufocar o amor a Deus. Nas origens a oração, meditação e contemplação eram voltadas para a missão, evangelização e apostolado; hoje ela está voltada para as  postagens midiáticas. Precisamos salvaguardar a quietude da vida espiritual como uma fonte de nossas atividades. O Espirito de Oração e Devoção foram  nossos Mestres nas origens e nos seguram de Jubileu em Jubileus.

E não podemos deixar de falar da Contemplação na Ação! Temos uma mãe e mestra: Santa Clara de Assis, o expoente mais qualificado da prece contemplativa e da ação missionária a partir do claustro. Clara é o encontro da sensibilidade de Francisco com a sensibilidade feminina. O feminino está presente na história jubilar da Ordem e todas as suas ramificações como força e concentração, serenidade, luz e alegria, fidelidade litúrgica, prece contínua. O amor de Deus se fez muito claro em Clara e fez uma base sólida através da pobreza mais radical, da humildade, enfim o caminho florido de tantas virtudes. Com Clara de Assis, a Ordem aprendeu que contemplação é missão; que não existe o título de Abadessa quando se é mãe e irmã, pois uma superiora e um superior tem que viver e comportar-se como pai e mãe. Mesmo doente, Clara não quis enfermaria, mas foi ficar no dormitório, junto com as Irmãs. Renunciou a lugares especiais, e no refeitório não se fez servir, serviu. Lázaro Iriarte, OFMCap, dizia que Clara nos ensinou: “Quem quer governar os outros,   deve antes de tudo ser aquele ou aquela que sabe governar-se e a si mesmo(a)”. Clara sempre viu o encontro comum como algo essencial e necessário e reunia as Irmãs semanalmente, não para tratar problemas, mas tendo como finalidade o Encontro Fraterno.

Clara ensinou que os doentes são os privilegiados da comunidade e o serviço a eles é uma resposta à Pobreza. Quem está doente do corpo corre também o risco de se tornar doente do espírito, por isso deve ser uma pessoa muito cuidada pelo amor de irmãos e irmãs. Ensinou que a arte de ser amigo ou amiga é escutar demais a importância de alguém. Ela e Francisco renunciaram a certos apegos particulares e podiam assim se querer muito bem. Autenticamente cristãos, Clara e Francisco tiveram a coragem de ser Evangelho.

Clara é uma mulher completamente ligada à sua terra natal. É a santa de Assis, uma expressão da cidade. Francisco esteve em todos os lugares, Clara não precisou sair dali para ganhar o mundo. Coragem, força e fidelidade atraem para além dos muros do mosteiro. Assis precisou de Clara na presença e na prece. Ela nunca se sentiu à parte da Ordem, mas sempre na mesma caminhada única da Fraternidade. Ela não nasce apenas espiritualmente de Francisco, mas o influenciou muito. Quem armou o Presépio, escreveu o “Cântico das  Criaturas” e teve uma Cruz marcada no corpo, aprendeu muito com uma mulher. Se tirar a mulher do caminho espiritual, a fonte seca.

 FREI VITORIO MAZZUCO FILHO

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Imagem: Piero Casentini

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DE JUBILEU EM JUBILEUS – 7 6 Feb 2024 1:52 AM (last year)

 


De Jubileu em Jubileus as Fraternidades Minoríticas se reinventam; umas decaem outras crescem na fidelidade ao melhor do Carisma. Algumas vivem a forte experiência espiritual, outras se ancoram no suporte jurídico. Na origem, as fraternidades primitivas eram construídas perto de onde passavam os rios e riachos. Há testemunho nos Arquivos Históricos que diz: “Façam nossas casas vizinhas ao rio para que possamos lavar os pés”. Peregrinos, andarilhos e itinerantes rachavam e sujavam os pés na terra e pedras das estradas, o lugar da água corrente era a sua sala de recreio. Não tinham claustro, mas abrigavam todos sem precisarem de senhas para entrar. Viver do pouco era uma ascese como um valor de domínio de corpo e espírito; hoje administrar o muito é contratar onerosa assessoria de empresas especializadas que transformam a ascese em ter que ler e escrever relatórios com inúteis e infundadas análises. Mesmo assim ainda sobrevivem os Juníperos e Egídios com santidade apropriada e adequada, porque o Carisma não deixa de ser um fenômeno. Nas origens os quadros de Giotto mostravam a Bíblia dos Pobres, hoje os pobres pintam um quadro provocativo fazendo fila em nossas obras. 

Das Lectio Divina aos comunicados escritos ou virtuais; da teologia, da dogmática, do conhecimento metodológico e científico, do humanismo franciscano formativo às sendas perdidas de não saber mais para onde ir quando se fala de formação  e estudos. Não conseguimos mais atualizar Francisco num mundo velho como o nosso. Se perdermos a mística e a espiritualidade como evangelizar? Por isso, de Jubileu em Jubileu temos que olhar e voltar a algumas raízes, e por que não conhecer?

          Vejamos:

 Pietro Olivi (+1228) dizia que a fazer obra de caridade é exigência da contemplação, porque é consequência natural da nossa condição de Ser Menores, fundamento da Penitência. Ângelo Clareno( +1337) afirma que a pobreza é um caminho místico; e que para viver uma vida virtuosa é preciso uma certa violência espiritual como exercício, pois não há progresso espiritual sem esforço. Ubertino de Casale (+1329) ensina a meditar e a praticar os mistérios da vida de Jesus Cristo, sobretudo a Paixão e Cruz. Jacopone de Todi (+1306) ensinava a alegria do coração e do amor na aniquilação de si mesmo para exaltar o outro. Para ele, pobreza e minoridade exprimem um caminho de purificação, iluminação e união. São Bernardino de Siena (+1444) foi do eremitério às missões populares como o apóstolo do Nome de Jesus. A pregação itinerante era um modo de renovar a sociedade, um fruto maduro da meditação e oração que se tornavam sermão e opção. João de Capistrano (+1456) queria ao menos uma hora de meditação diária, repassando palavra por palavra, sílaba por sílaba os mistérios presentes no Ofício Divino e nas Coroas Franciscanas com seus sete mistérios de dores e alegrias. Querubim de Spoleto (+1484) escreveu uma Regra de Vida Espiritual como um método para rezar com a mente e coração em plena ligação com o corpo e espirito os 45 Pais-Nossos, diariamente, levando em conta o pensamento, a afeição, a fala, o modo, a conversação e como ele mesmo dizia, a “mundificação” da prece como pensar, meditar, amar, falar, fazer, conversar e perdoar. Para ele, a oração é concreção e participação. Pedro de Alcântara (+1562) trouxe o jeito de pensar os limites humanos como a consciência de si e a plena atenção aos benefícios de Deus. Preparar-se para rezar não pode ser feito de qualquer maneira, mas de um modo bem acurado para um agradecimento e oferta de si mesmo a Deus. 

CONTINUA

FREI VITORIO MAZZUCO FILHO

Imagem: S. João de Capistrano (Vatican Media) S

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DE JUBILEU EM JUBILEUS – 6 16 Jan 2024 2:34 AM (last year)

 


Os Espirituais não querem perder o movimento que está no início da Ordem. Querem recriar o Movimento de Assis e imitar fielmente o São Francisco de Assis histórico. Não se impressionam pelo crescimento e transformação em uma Ordem, mas se apoiam no Espírito das Origens, na Tradição Oral e nos Escritos dos Primeiros Companheiros, destacando a Legenda dos Três Companheiros, (Ângelo( +1258), Rufino (+1278) e Leão( 1278), que são para eles os testemunhos privilegiados desta origem. Os Espirituais têm a liderança de Frei Leão e ainda destacam Bernardo de Quintavalle (+ 1242) que viveu 16 anos depois da morte de São Francisco, Clara de Assis (+1253), viveu 27 anos depois de São Francisco e Frei Egídio de Assis(+1261), viveu 35 anos após a morte de São Francisco.

Nos 50 anos após a morte de São Francisco estavam presentes ainda os Testemunhos Vivos que usavam a expressão em seus escritos: “Nos qui cum eo  fuimus” ,isto é, “nós que com ele estivemos” ( cf. Compilação de Assis,14, 2 e nos vários parágrafos seguintes) Influenciavam gerações futuras. Tinham muito contato entre si e por cartas e bilhetes, mantinham viva a memória dos primeiros tempos. Foram muito importantes para o conhecimento de São Francisco. Ângelo Clareno entra na Ordem em 1260 e conheceu pessoalmente Ângelo, Egídio e João (companheiro de Egídio). Eles eram a Minoria, chamados os Súditos. O termo Espirituais vem a ser mais usado a partir de 1274 e tiveram nomes muito influentes por serem os que recolheram material para as Fontes dos primeiros tempos. Eram os seguintes: Giovanni de Parma, o Ministro Geral depois de Boaventura de Bagnoreggio; Corrado de Ofida, amigo pessoal de Frei Leão. Giacomo de Massa , muito amigo de Clara, Leão e Egídio. Viviam em Regiões bem destacadas que se tornaram os centros de irradiação dos Espirituais, nas Marcas, Itália, (ali viveu Ângelo Clareno), na Provença, França (Pedro Olivi) e na Toscana, Itália, (Ubertino de Casale).

Os Fraticelli que aparecem forte em 1317, são a difusão das Tradições dos Espirituais e passam a ser um nome genérico que indica Vários Grupos, Outros Grupos da frondosa árvore franciscana, são chamados de “frutus de paupere vita”, frutos da vida em pobreza. Deles também surgiram o ramo feminino das Beguinas e os Pizzochi. Sofreram bastante e foram tachados de hereges. Formam 02 grupos: 1. Os Religiosos que são bem radicais na vida da Pobreza e na opinião. Usavam o Latim na comunicação e na escrita. Deste grupo fazem parte Michelle de Cesena e Guilherme Ockham. 2. Os Leigos, as Beguinas e os Pizzochi. Escreviam e falavam o italiano vulgar. Estes dois grupos estavam nas Marcas, Úmbria, Toscana, Roma, Napoli, Sicília e Provença e eram grupos que reagiam contra o estilo de vida da Ordem e consideravam-se os que viviam melhor a Regra de São Francisco. Lançavam um questionamento que pode ser bem atual: Quem tem mais valor? Os que estão na Regra, mas não a viviam ; ou os que não estão na Ordem, porém vivem a Regra? 

Estes grupos não criaram uma separação para detonar a Ordem, mas sim separar para ser o mais fiel possível a Forma de Vida das origens. Para todos estes grupos a questão é uma só: serem fiéis a Regra, ao Evangelho e a Pobreza. Diz Duncan Nimmo: “A união do coração vai melhor assegurada separando as estruturas”. Eles separaram o peso das estruturas, mas não se separaram no coração; por isso de Jubileu em Jubileus lá se vão 800 anos! 

CONTINUA

FREI VITORIO MAZZUCO FILHO

Imagem ilustrativa: Afrescos de Ubaldo Oppi na Capela de São Francisco (Pádua, Basílica de Santo Antônio)


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DE JUBILEU EM JUBILEUS – 5 20 Dec 2023 2:02 AM (last year)

 

De Jubileu em Jubileus a presença franciscana se consolida. São oito séculos de tantas vivências, experiências e divergências, fraternâncias e dissidências; mas sempre buscando a força da identidade de Ser Menor e isto resultou numa história muito transparente. Hoje nós temos um cristianismo não tanto segregado por igrejas, mas por movimentos; cada um achando que tem a solução e a salvação, mas perdem muito a identidade cristã seguindo fundadores cada vez mais presos a rubricas e estruturas. O que segurou a Ordem Franciscana é a busca comum do Espírito Comum; porém isto não impediu ramificações dentro da própria família religiosa; diferente e iguais; fraternalmente agrupados e espiritualmente fortalecidos. 

A história dos grupos franciscanos primitivos não é só passado, mas nos faz entender como são os frades e tudo o que brota daí. A história é uma grande casa e precisamos de uma chave para entrar numa de suas muitas portas. As respostas que procuramos às perguntas que temos para esta casa serão sempre diferentes porque as pessoas e as épocas não são iguais, tanto no modo vivente, como no modo de assimilar a vida, por isso o franciscanismo soube ler cada época onde esteve e está presente. Na história jubilar da Ordem todos são de acordo sobre um Fundamento Único: O Evangelho como Vida e Regra. A diferença é de estrutura, escolha e opinião. As Reformas da Ordem mudaram e causaram muita opinião. As Estruturas pesadas que a Ordem criou para si causaram muita divisão. 

Estas diferenças de opinião e estrutura criaram 03 grupos: Os Espirituais, Os Fraticelli e os Outros. Os Espirituais queriam seguir radicalmente São  Francisco de Assis e a Regra Não Bulada de 1221. É um posicionamento fechado, literal, rigoroso. Os Fraticelli queriam priorizar a Regra Bulada de 1223 dizendo que ela contém toda a base da vida escolhida pelos frades menores. Reforçam-se de Bulas e Documentos Pontifícios. Os Fraticelli têm uma posição mais moderada. Os Outros queriam a dispensa da Regra e um posicionamento mais aberto frente ao Carisma, para que houvesse uma espiritualidade mais relaxada e ampla.

Esta divisão vem basicamente de dois grupos: a Comunidade e os Espirituais. A Comunidade é entendida como o grupo geral dos frades que querem sustentar um desenvolvimento do Ideal da Ordem mesmo que precisasse mudar o modo original da vida. É uma força grupal que vive e convive os 50 primeiros anos. Ela, a Comunidade, é a raiz de um grupo primitivo que cresce e se transforma e se fortalece como uma Ordem grandiosa e organizada. Tem uma força itinerante, missionária, apostólica, clerical, douta, camponesa e conventual, e se apoia nas Fontes Franciscanas com seus Escritos e Biografias. Era a  Maioria no sentido de Superiores.

CONTINUA

FREI VITORIO MAZZUCO FILHO

Imagem ilustrativa: Pádua – Basílica do Santo – Capela de São Francisco - O Capítulo das Esteiras (Assis, 1221) – Ubaldo Oppi(século XX) criou o ciclo de afrescos dedicados a São Francisco na Basílica do Santo de Pádua. O frade com o pé apoiado no banco é o autorretrato do pintor.

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DE JUBILEU EM JUBILEUS – 4 11 Dec 2023 3:07 AM (last year)

 

O movimento franciscano primitivo optou pelo não-ser e o não ter. Não ser nobre e rico de privilégios, porém estar como servos dos leprosos, doentes, mendigos, peregrinos e outros tantos segregados. Não se enquadraram nas prioridades materiais de seu tempo que opunha servo ao senhor do feudo, a burguesia da cidade que aos poucos ia assumindo o sistema mercantil, o feudalismo agrário, a produção artesanal e os enfrentamentos pela hegemonia do poder entre os síndicos da comuna, o papa e o imperador. O franciscanismo ficou fora desta tensão porque quer o não-ter um lugar que gere acúmulo e produção desenfreada. Prefere olhar quem são as categorias sociais da época olhando de perto em que lugar estão as pessoas, por isto se fazem peregrinos. Se não ir onde o povo está, como saber da realidade? Ser um itinerante, um peregrino, um forasteiro é uma base primordial da identidade franciscana. Saem dos limites de Assis e inauguram o “em saída” proclamada hoje pelo Papa Francisco. 

Sonham um novo lugar para a humanidade e este lugar está no serviço desinteressado. Hoje, o movimento perdeu a itinerância porque se queda em paróquias e obras. Mexem com as estruturas do mundo, mas gastam tempo administrando o que emperra ou chora as estatísticas dos muitos que foram se incardinar fora da vida fraterna. O movimento primitivo partiu do não-lugar e do não-ter para um novo ser. Não excluem grandes ou pequenos, desde que a prioridade seja a fraternidade. O ser peregrino também redescobre a dimensão das criaturas. Assim consegue, sem grandes pretensões, tornar-se um fenômeno religioso, cultural e humano. Sabem que não conseguirão transformar de imediato a sociedade da época, mas mostram perfeita alegria ante as portas que se fecham. Não é fácil abrir entradas para ser irmão e irmã onde está a nobreza e o clericalismo. Igualdade social não existe onde está o seguro condomínio dos bens; por isso abraçaram os marginais. Não foram originais quanto a isso, apenas seguiram as trilhas do Evangelho que mostram que nenhuma utopia fracassa se o Amor está entre as gentes. 

Sonhadores não morrem à beira da estrada, mas são persistentes. Desaparecem e reaparecem sempre. Ganharam  nomes como espirituais, fraticelli, joaquinitas, alcantarinos e outros; passaram pelo furor da Inquisição, mas não esmoreceram na tarefa de sempre procurar o espírito genuíno do fundador, Francisco de Assis; a proposta do Evangelho; e de reforma em reforma, de jubileu em jubileus sempre quiseram a fonte primitiva da vida cristã, não como retrocesso, mas como processo de coerência. É medieval, moderno e de um esperançoso futuro; une missão, apostolado e martírio, entre o povo e a natureza. Afinal de contas, quem apanha mais é o povo e o explorado mundo das criaturas.

CONTINUA

FREI VITORIO MAZZUCO FILHO

Imagem ilustrativa: José Benlliure y Gil (Espanha, 1855-1937)

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DE JUBILEU EM JUBILEUS – 3 5 Dec 2023 12:49 AM (last year)


Bem que tentaram, mas não encontraram nenhuma sobra de heresia no franciscanismo primitivo, que nunca se opôs a Igreja, mas mostrou para a eclesiologia que conversão também vale para os que são entusiastas da hierarquia. Ajudavam o clero na época mesmo sabendo que simonia e concubinato rodeavam algumas sacristias. Preferiam evitar conflitos e amavam através de um serviço prestado a todos; amor e serviço podem mudar algumas mentalidades. Mostraram que ser franciscano era fazer o que ninguém queria fazer. Procuraram descomplicar o modo de viver liturgicamente a religiosidade sempre confrontada pelos hereges . As heresias de ontem e de hoje se parecem muito, porque são radicais, com apegos a detalhes exagerados. esquecendo o mistério. 

A  heresia  de hoje se opõe ao magistério e seus documentos, não reverencia o Papa, está mais preocupada com o modo de comungar do que com a Eucaristia ; briga sobre que lado se coloca o crucifixo no altar, mas não quer nada com a Cruz. Querem um reerguimento moral, mas discriminam pobres, negros, índios e com um sorrisinho condenatório, mostram seu lado homofóbico. Francisco de Assis e seus  frades se misturaram ao povo sem julgar o que seria o normal de uma vida pública, mas declararam sempre a sua identidade social para que todos soubessem de que lado estavam e qual é o seu posicionamento moral-cristão  na vida. O Evangelho sempre mostrou bem claro de que lado estava e está Jesus Cristo.  Os frades primitivos não eram heróis de um catolicismo ascético e condenatório, mas sim penitentes mensageiros de paz.

Francisco de Assis não quis ficar fora da Igreja, mas estava mais dentro do Reino. Estar do lado do Reino é encher o mundo de esperança e conversão e não aumentar a fila da procissão de entrada nas missas com figurantes que não estão nem na Igreja e nem no Reino, mas reproduzem um certo culto da personalidade, ou, então para mostrar quanto mais fitas no pescoço melhor;  trocam de fitas a cada reunião diferente, servem os eventos paroquiais, mas não estão a serviço da vida a partir do Evangelho. As heresias de hoje são piores do que as da Idade Média porque impõem uma dominação do modo religioso. Mas as heresias em todos os tempos se parecem.  Francisco de Assis quis o Presépio, Altar e Cruz como transformações da humanidade sem muita pompa e circunstância, sem cerimônias preceituais, mas sim  entrar no coração da vida pela Palavra e pelas práticas.

CONTINUA

FREI VITORIO MAZZUCO FILHO

Imagem: Benezzo Gozzoli, "Cena da Vida de São Francisco: O Papa Inocêncio III teve um sonho, onde viu a Basílica de São João de Latrão prestes a desabar, apenas sustentada por um pobre religioso, que ele interpretou como sendo Francisco. Ao lado desta imagem, Francisco pede ao Papa a aprovação do modo de vida dos frades (1452, Wikiimedia Commons).

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DE JUBILEU EM JUBILEUS – 2 28 Nov 2023 5:07 AM (last year)

 

A pureza do Evangelho vivido por ele incomoda até hoje os que querem seguir coachs e experts em conteúdos religiosos que se tornam influenciadores dos que não querem assumir a radicalidade que a vida cristã é: presépio, altar e cruz.  Se for para seguir mesmo Jesus é preciso ser como Francisco de Assis: ir na contramão da sociedade e viver uma conversão pra valer. Ele fez seguidores no modo ideal de vida de seguir os conselhos evangélicos. Ele faz a todos revisitarem os primórdios do cristianismo. No seu tempo, ele soube dizer um não, bem determinado a tudo que disputava espaço na sua querida cidade de Assis: a força do senhorio feudal e a nascente burguesia que dominavam as cidades. Não apoiou o trabalho na servidão rural, mas ajudou os camponeses que precisavam de voluntarioso trabalho. Aprendeu o que era bom e o que não era necessário com os movimentos de religiosidade popular; não entrou no modismo dos hereges que a tudo contestavam, mas preferiu permanecer dentro da Igreja com as lentes mais nítidas do Evangelho.

Hoje, fala-se muito da Economia de Clara e Francisco. Muitos criticam dizendo que é coisa de Papa que tende ao comunismo. Mas deixemos isto para a ignorância dos desinformados e alienados. Voltemos os olhos para a história do Franciscanismo e seu fundador que não se deixou seduzir pelos valores da burguesia de Assis. Seu pai, Pedro Bernardone queria que ele tivesse posse e bens, ele preferiu o desprendimento necessário para seguir Jesus Cristo. Francisco não foi um mercador da comuna, mas um recusador do dinheiro e do sistema apropriativo. Se trazia segurança para os nobres, o ethos burguês enchia as ruas de mendigos. Os frades e os pobres preferiam a segurança de Francisco de Assis que se chamava Fraternidade, irmãos ajudando irmãos, incondicionalmente. A Fraternidade era uma resposta contra a acumulação. Francisco nasceu e cresceu na escola de seu pai, que era mestre na lei da oferta e da procura, e da prosperidade mercantil. Francisco optou pela partilha fraterna em substituição a economia de apropriação.

Francisco de Assis rejeita a paz e os tratados de paz fundados nas guerras e nas armas. Ele desarmou a mente, o corpo e o espírito, para não se deixar contaminar pelo neoliberalismo dos burgueses de Assis. Justiça para o franciscanismo primitivo é partilha. Bens são para ser colocados a serviço e não para  comprar privilégios. Ele foi esmolar não para fazer obra de caridade, mas para dizer que a esmola era um direito do pobre e um dever de quem tinha a mais. Uma terra não pode abandonar os que nascem ali no seu lugar, mas tem que ajudar a prosperar, e não somente a prosperidade de uns poucos. Nascer como Movimento e fazer-se Ordem é colocar ordem na divisão de bens. Assis era um exemplo de desnível social. Francisco e seus frades mexeram com a ordem social de Assis, sem fazer revolução, mas andando como mendicantes e orantes. Eles trabalhavam com as próprias mãos para sobreviver como grupo e dividir com os que não tinham nenhum privilégio. O trabalho tornou-se serviço aos outros e não ascensão social; por isso recusavam postos de comando e chefias e se faziam ministros e servos do bem comum. Eles tinham a oração e a pregação a partir do coração e o trabalho artesanal nas mãos. Difícil foi ser coerentes com tudo isto, pois a subsistência tradicional da religião estava embasada em espórtulas, doações, esmolas, benefícios, privilégios, doações, rendas, remuneração e terras. Hoje os termos mudaram para prebendas, dízimo, campanhas de devotos, mas é a mesma coisa.

CONTINUA

FREI VITORIO MAZZUCO FILHO

Imagem ilustrativa: Frei Beto Coelho

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DE JUBILEU EM JUBILEUS – 1 23 Nov 2023 12:57 AM (last year)

 


De 2023 até 2026 a Ordem Franciscana celebra 800 anos da Regra Bulada, do Presépio de Greccio, dos Estigmas de São Francisco, do Cântico das Criaturas e do Encontro de Francisco com a Irmã Morte. O mundo franciscano vibra e se reinventa em aprofundamentos, afirmações e avaliações de seu modo original. É tempo também de repensar a Identidade deste carisma que tem muito a revelar ao mundo. Antônio Sebastiano Francesco Gramsci, filósofo, historiador e político italiano, escreveu: “Francisco foi um cometa no firmamento católico. Seu movimento foi popular enquanto viveu a recordação do fundador” (Gramsci A. "Lettere dal Carcere", Turim, Einaudi, 1968, p.154). Cometas voltam de anos em anos a criar uma trilha de luz na imensidão do cosmo. O brilho de Francisco se apresenta de jubileu em jubileus, mas é uma contínua estrela cataporando pingos de luz em cada momento onde ele é evocado. Ele é um  humano santo que não sai do dia a dia, atrai grupos pequenos e multidões, famílias de seu frondoso tronco de Regra inspiradora, consagrados e simpatizantes, se ocupam com sua vida, escritos e história; mas sobretudo contemplam as faíscas de luz que ele deixa na história de tantos e tantas.

Há tantas caracterizações de Francisco de Assis; desde o modo como ele veste e faz a investidura do Evangelho em corpo, mente alma e coração; as marcas profundas da cristificação de sua vida, o jeito fraterno de relacionar-se com todos e com tudo, a iniciativa de agregar humanos e criaturas e antecipar por oito séculos a Laudato Sì; ele que começou colocando o Papa Inocêncio III para elucidar sonhos de reconstrução, até concretizar novamente a cristianização do catolicismo com um Papa que adotou seu modo de ser e seu nome, o Papa Francisco. E num mundo de poder e dominação é o profeta do ethos identificado com o ser menor, que é resguardar a dignidade da pessoa humana, do pobre, das aves e plantas, passando pelo senso crítico de um valor cultural e hagiográfico em todos os níveis. É o humano santo das Legendas, Escritos, Biografias, Teses e Literatura, Musicais e Filmes. Romantizado, seguido, amado e nem sempre bem compreendido, enche de admiração todos os que buscam uma senda espiritual.

Francisco de Assis passa a ser a referência relevante desde os primórdios do século XIII até hoje, de uma fidelidade, cheia de mística, poesia e obras escritas, do que vem a ser uma teocracia curial, uma hegemonia eclesiástica, um questionamento social e até uma certa ruptura com isto tudo para seguir uma única inspiração: a casa que está em ruínas tem que ser reerguida. Ele não embarca no sistema produtivo de acumulação e riqueza, mas vive a pobreza como uma profecia de despojamento de bens para não se corromper em privilégios. Ele abalou o civil e o clerical, ele refez a utopia do Evangelho para que se tornasse realidade aquela frase provocativa de uma oração eucarística que diz: “Dai  força para construirmos juntos o vosso Reino que também é nosso”. Colocado nas cátedras, aulas e simpósios de teologia e filosofia, entra na ecologia e antropologia, e até suscita uma cosmovisão franciscana, mais vivida entre os buscadores da verdade do que pelos seus próprios Irmãos Menores. Mas é um pilar de fé, religiosidade popular, movimentos, ordens, institutos e congregações, novas formas de vida e patrono de pluralidades culturais, religiosas e de gênero. É um luzeiro para povos que sonham uma cultura de paz. Há um Francisco de Assis primordial e atual que precisa ser honestamente pensado. De 1209 a 1221 e de 1223 até 2023 ele faz muita gente debruçar sobre suas Regras não aprovadas e até Bulada, porque um visionário precisa ser controlado pelo jurídico-canônico e ser abençoado oficialmente para mostrar que o seu caminho não tem volta, com exigências canônicas ou sem elas; porque ele escolheu o Evangelho que não foi derrotado nem por um calvário sobre um monte chamado Gólgota.

CONTINUA

FREI VITORIO MAZZUCO FILHO

Imagem ilustrativa: Piero Casentini

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