Há uma cigana (idosa, cabelos brancos, sempre sozinha) que mora na minha zona e que já me habituei a ver um pouco por todo o lado. Nos correios, onde vai perguntar se já chegou não sei o quê (talvez a pensão); no supermercado, onde vai comprar os básicos; e, sobretudo, nos semáforos ou nos cafés, a pedir às pessoas se "não lhe pagam um galãozinho". Na véspera, eu tinha-a visto a pedir junto de um carro estacionado para deixar entrar passageiros; só lhe faltou entrar para dentro do carro a pedir. O dono do café, hoje, interpela-a quando a vê perguntar aos clientes, pela segunda vez no dia, se "não lhe pagam um galãozinho": "Mas então não tomou já hoje o pequeno-almoço?" E ela responde-lhe "É para aquecer que hoje está frio." O dono do café abana a cabeça.
Por razões que não tenho bem a certeza de entender, todos os agentes da polícia com quem me cruzo hoje estão ao telefone.
Na fila para comprar o jornal, uma senhora velhota pergunta se precisa de ir para a fila para pagar a revista Telenovelas porque já lá tinha estado antes. O caixa diz que tem de ir para a fila a não ser que as pessoas à minha frente a deixassem pagar primeiro - e as pessoas à minha frente, que são um casal velhote, deixam. Isto apesar de eu também só querer comprar um jornal e de ter ido para a fila na mesma. É daquelas coisas que me leva a questionar exactamente qual é a noção de "civismo" dos portugueses.
A senhora está de pé na recepção do centro de saúde, com aquele ar enfadado de quem tem muito que fazer à segunda de manhã e não está para estar ali a perder tempo desnecessariamente, consultando o telemóvel todos os dez segundos e afivelando o ar de "eu sou uma pessoa importante e não estou para ficar aqui à espera". Assim que a senhora que está a ser atendida termina, dirige-se à funcionária administrativa com o mal-disfarçado desdém de quem não está para isto, atira com a sua senha para a mesa e diz-lhe, de alto e sem sequer se sentar, "olhe, eu estou aqui à espera só porque preciso de uma justificação para o emprego". Ao longo dos cinco minutos seguintes, chega ao ponto de dizer à funcionária o que ela deve escrever no justificativo, agastada por a sua médica ter faltado. "É a segunda vez num mês, e ela falta sempre à segunda-feira. Eu também gosto de fins-de-semana prolongados mas tenho de trabalhar à segunda-feira." A funcionária pergunta-lhe: "9 e 25?" "9 e 25 o quê?" "São 9 e 25." "Ponha 9 e 30, que são os cinco minutos que eu levo a chegar lá acima. E escreva que não fui atendida por falta da médica, senão ainda acham que eu não tinha consulta nenhuma."
A senhora sentada ao balcão da cafetaria do Corte Inglés não se cala: diz ao homem com quem está e a quem a quiser ouvir que a comida ali é toda uma porcaria e não há um prato de jeito e o atendimento é muito demorado. Dou por mim com vontade de lhe dizer: se não gosta porque é que não vai comer a outro lado?
Um homem andrajoso e sujo entra no autocarro e dirige-se para os lugares das traseiras; atrás de si deixa o odor característico de quem não se lava há muito tempo. Algumas paragens mais à frente, entram os revisores da Carris para verificar os bilhetes. Quando o revisor chega ao homem andrajoso e sujo, este responde "não tenho passe nem tenho bilhete nem tenho dinheiro". O revisor grita para o condutor abrir a porta e o senhor, depois de repetir "não tenho passe nem tenho bilhete nem tenho dinheiro", sai do autocarro. Uma senhora ouve-se a dizer "se fosse eu ele ou não tinha entrado ou pagava a multa como as outras pessoas".
Ouvido no café ao pequeno-almoço depois da derrota com a Espanha: "Dou mais cinco anos ao Cristiano Ronaldo. Sem ele, o que é que Portugal tem? Nada. O Bruno Alves é atrasado mental. Aquele Postiga? Não joga nada, está no Saragoça não joga no Saragoça, o Sporting não o quis, não joga nada. Portugal deu um baile à Espanha? Portugal não jogou nada, quantos espanhóis jogaram à sua altura habitual? Dois."
Porque é que as pessoas vêem sempre nas janelas dos autocarros a indicação "ar condicionado. Por favor manter a janela fechada" e apesar disso abrem sempre a janela?
No café do Classic Alvalade, enquanto espero por uma projecção, um sem-abrigo (sujo, determinado, mal vestido) entra pelo café dentro e dirige-se à minha mesa. Penso que me vai pedir esmola ou que lhe pague um café. Em vez disso, diz-me "posso?" e dirige a mão para o meu queque. Digo-lhe que não. Agarra então na chávena de café praticamente vazia e, enquanto pergunta de novo "posso?", perante o meu ar atónito (e das empregadas do café) antes que eu possa dizer que "não", bebe o resto do café, pousa a chávena e lança-me quase ofendido "não tem açúcar!".
Enquanto as empregadas tentam desesperadamente correr com o homem, ele faz exactamente o mesmo com outras mesas antes que o projeccionista consiga finalmente pô-lo fora. Perguntam-se se será um fugido do Júlio de Matos.
Diz a moça encostada à porta do autocarro vestida de modo espalhafatoso e com voz rouca, saltos altos e cabelo louro, para o senhor velhote que se prepara para sair: "O senhor saia lá e não caia, em vez de estar a olhar para onde não deve..."
A cem à hora na auto-estrada e sou ultrapassado por um Smart. Amarelo.
"São nove euros e cinquenta e cinco," diz o empregado da caixa do supermercado à cliente que lhe perguntara se seria possível "fazer um embrulho" para uma das compras (e ao que ele respondera "tenho que ver").
"Puxa!", responde a senhora, "já não se pode sair de casa hoje! Já viu isto?", diz a uma vizinha que está na fila mais à frente à espera da sua vez, "Uma pessoa sai à rua e é sempre a gastar dinheiro, mais vale ficar trancada em casa, assim ao menos não gosto dinheiro."
"E já lá foi?" pergunta a vizinha na fila.
"Fui lá com a filha da minha prima," responde a senhora, "e já lhe conto uma assim que pagar", diz enquanto se dirige ao segurança da loja para ver se ele lhe faz o embrulho.
Quatro turistas alemães, no autocarro, falam entre si em alemão. Um senhor de meia-idade, à aproximação do Marquês de Pombal, dirige-se-lhes em francês, apontando a paragem: "Marquês de Pombal. La prochaine." Os turistas não percebem se o senhor está a falar com eles e continuam a falar entre si. O senhor fala para o ar, com ar ofendido e desconfiado: "São estes cabrões que nos andam a roubar e nós sem fazer nada." Saem todos juntos na paragem do Marquês e enquanto o autocarro parte vejo o senhor a dirigir a palavra aos turistas alemães.
"Uma grama não é nada" - ouvido à porta do Liceu Pedro Nunes.
Está vivo e recomenda-se no metro do Marquês de Pombal.
Estará aqui o futuro da economia portuguesa?
Tinaiger inconsciente, loura de cabelo escorrido, vestida de cores garridas psicadélicas muito veraneantes, com sorriso de aparelho dentário, auscultadores de MP3 (um num ouvido, o outro pendurado) e telemóvel pendurado ao pescoço num cordão colorido: "Ai, não era aqui que eu tinha de ter saído!" Tinaiger inconsciente, moreno, T-shirt, calções, ténis de lona e mochila de surf fashion: "Então?" Ela: "Não era aqui, a casa dele fica bué longe!" Ele: "Então boa viagem!"
Alguém conhece alguém que more verdadeiramente numa casa tão impecável como as que aparecem no catálogo da IKEA (ou pelo menos alguém que não seja sueco)? Será a isto que se chama "marketing aspiracional"?
São Francisco é uma cidade onde os restaurantes têm um "prazo de validade" muito relativo. Alguns clássicos nunca passam de moda, como o sublime Anchor Oyster Bar, onde se continuam a fazer os melhores pastéis de caranguejo que já comi (e eu nem sou um grande fã de caranguejo) e uma caldeirada de marisco de chorar por mais (dizem-me, porque não sou fã), e as ostras são fresquíssimas (isso, então, é mesmo coisa que não consigo comer). A experiência do hamburger de caranguejo, contudo, sem chegar ao nirvana do pastel de caranguejo, é francamente digna de repetir. Os preços, hélàs!, não são muito convidativos, mas para uma refeição especial vale mesmo a pena.
Sítio novo também de preços um bocadinho puxados, mas francamente recomendável, é o Boxing Room. A ideia é uma espécie de "nouvelle cuisine" da Louisiana, ou de clássicos da comida americana revistos por uma sensibilidade do Sul americano (exemplo: a entrada de amendoins cozidos à "cajun", que são cozidos inteiros com especiarias e vêm para a mesa ainda por descascar num pequeno caldeirão; ou o hamburger da casa, servido com "molho de mostarda crioula"). A comida é muito boa, mas a arquitectura é fabulosa: uma sala alta e envidraçada em madeira, arejadíssima, bem no centro de Hayes Valley, onde antes ficava o Citizen Cake (que mudou entretanto para a Fillmore). Toque de classe: as bebidas são servidas em pequenas canecas-jarro.
Outra novidade de preços mais em conta é o Starbelly, menos um restaurante do que um café-restaurante com "comfort food" (que se pode traduzir por "comida da mamã") ideal para os pequenos-almoços-almoçarados que fazem aqui tanto furor ao fim de semana e aos feriados: saladas, sanduíches, pizzas. Bem boas, por sinal, e servidas numa sala comprida com esplanada coberta e aquecida nas traseiras (sim, porque mesmo de Natal eles comem na rua).
Em vez das sobremesas de restaurante, no entanto, bom mesmo é fazer-se ao gelado caseiro das geladarias gourmet da cidade. Duas em particular merecem tudo, e numa comi provavelmente o melhor gelado que já provei: na Smitten, recém-inaugurada num jardinzinho de Hayes Valley, onde o gelado é (juro-vos) fabricado à frente do cliente, misturado numa máquina de azoto líquido. Isto limita o número de sabores disponíveis diariamente (um máximo de quatro, com uma máquina para cada sabor) mas garante também que o gelado é literalmente fresquíssimo, acompanhado por coberturas feitas na casa (experiência: baunilha com malte, com cobertura de praline de cacau em nougat). De fabrico caseiro igualmente mas mais tradicional são os gelados da Bi-Rite Creamery em Dolores Park, com sabores como mel e alfazema, caramelo salgado ou chá Earl Grey, acompanhados por bolachas e biscoitos feitos diariamente na própria loja. As filas, mesmo em pleno Inverno, dão a volta à esquina (o gelado de baunilha e chocolate com coco que provei justificava plenamente a espera).
Desconfio que vou recuperar os cinco quilos que tinha perdido.
Toda a gente em São Francisco tem um smartphone (e oitenta por cento dos smartphones de São Francisco são iPhones, mas isso agora não interessa nada), e toda a gente em São Francisco está permanentemente a fazer qualquer coisa com o smartphone ao pequeno-almoço, ao almoço, ao café, ao jantar, enquanto bebe um copo, etc. Não é um exclusivo americano, nem de São Francisco, mas atinge aqui uma dimensão que ainda não senti em Lisboa - ao ponto de ter visto alguém no Café Mystique a tirar uma foto do almoço com o iPhone. Tenho a sensação que, agora sim, estamos a entrar naquilo a que se chama "realidade aumentada".
Nos seis anos desde que visitei São Francisco pela primeira vez, muitas coisas têm vindo a mudar. Pode parecer uma verdade de La Palisse, mas é também um reflexo do modo como criamos "âncoras" numa cidade e da maneira como elas resistem, ou não, ao tempo.
Gostava de tomar um pequeno-almoço "à americana" no Welcome Home, que já fechou há uns anos. No seu lugar está agora o Café Mystique, onde não se come mal, mas que arma mais ao pingarelho do que o Welcome Home e onde o Michael Levy ia tendo um ataque com o serviço um bocadinho confuso. Sítios como o Blue e o Luna Café praticamente morreram em termos de qualidade da comida e do serviço; a cadeia Firewood continua a ser aquela solução eficaz de comida simples, funcional, bem feita e rápida. Dizem-me que o 2223 vai fechar de vez no Ano Novo, mas o La Méditerranée continua a ser uma boa opção, e o Nob Hill Cafe continua igual a si mesmo. A galeria comercial Metreon, ancorada por uma super-loja da Sony, está praticamente fechada - apenas sobraram os cinemas da AMC e pouco mais; a antiga loja da Virgin, mesmo em frente da loja da Apple, é agora mais uma loja de roupa; com a falência da Borders, a grande livraria da Union Square é agora um enorme espaço vazio e fechado. O supermercado Cala Foods da 18th passou para a cadeia Mollie Stone's.
O Castro Theatre, esse, continua em grande, com um programa de luxo que já passou pela Árvore da Vida de Malick (que ganha uma dimensão completamente nova visto com alguém especial) e, antes que 2011 acabe, ainda vai trazer dois Minnellis - Não Há como a Nossa Casa e A Roda da Fortuna -, dois Donen/Kelly - Serenata à Chuva e Um Dia em Nova Iorque -, Os Guarda-Chuvas de Cherburgo de Demy e Uma Mulher é uma Mulher de Godard. Dou por mim a pensar a falta que fazia uma sala destas em Lisboa, mas depois penso melhor e dou-me feliz por termos a Cinemateca. Os bilhetes é que estão carotes para o nível de vida local - dez dólares (sete euros) nas sessões normais do Castro, apenas dois ou três dólares mais baratos que uma sessão num dos grandes multiplex da cidade (sem 3D, evidentemente, com o qual o preço salta para os quinze dólares, ou onze euros e meio).
As ruas têm estado a abarrotar de consumistas natalícios; as compras nas lojas do costume (uma Amoeba, uma City Lights - e, actualmente, em São Francisco, livros e discos só podem mesmo ser comprados nestas lojas "mom-and-pop") ficaram, por isso, para depois do Boxing Day, o dia a seguir ao dia de Natal. Os Pittsburgh Steelers perderam escandalosamente com os San Francisco 49ers num jogo que ficou infame por ter faltado a luz duas vezes, mas compensaram esmagando os St. Louis Rams 27-0 na véspera de Natal (e sem o Big Ben na equipa).
E é bom deixarmo-nos embarcar em novas possibilidades de tradições de Natal. O espectáculo de Natal anual do San Francisco Gay Men's Chorus no Castro, equivalente local (numa estética obviamente menos convencional) do Concerto do Ano Novo de Viena, foi uma surpreendente revelação de bom humor e sábio equilíbrio entre solenidade e prazer. E a Missa do Galo anglicana, numa Grace Cathedral a abarrotar (hora e meia antes do início do serviço já quase não havia lugar sentado), um fascinante momento de ritual. Com uma atenção tão minuciosa à música sacra que mesmo os não-religiosos, como eu, puderam apreciar a beleza do momento.
Hoje é um momento de pausa. A todos um bom Natal.
Estão a ver a cena da Fantasia de Natal com o palhaço que foi com o coelhinho no comboio ao circo? Juro que ontem vi um presépio de Natal que tinha uma montanha-russa. Não estou a brincar. Tentaremos obter provas.